'Teste do sofá' é nome fofinho para estupro no sofá, diz roteirista
Trabalhando como roteirista de séries de televisão desde o fim dos anos 1980, a americana Nell Scovell publicou em 2018 um livro muito bom, no qual combina dicas para profissionais do ramo com relatos sobre o machismo e o assédio sexual em Hollywood.
Recém-lançado no Brasil, “Só as Partes Engraçadas” (HarperCollins, 332 págs., R$ 49,90) mostra como a indústria do entretenimento ainda tem enorme dificuldade em lidar com a questão de gênero.
Na passagem mais chocante, ela descreve uma situação de assédio que sofreu no início da carreira, por parte de um roteirista mais experiente, que terminou com sexo oral.
Quase três décadas depois, escreve: “Hollywood ainda tem muito o que fazer para mudar a sua aceitação casual de comportamentos que vão do inapropriado ao criminoso”.
E faz uma distinção fundamental, referindo-se a uma expressão também bastante popular no Brasil: “Aliás, o assédio sexual está tão incutido no show business que a indústria tem até um nome fofinho para isso: afinal ‘teste do sofá’ soa melhor que ‘estupro no sofá’.”
Nell Scovell escreveu roteiros ou foi produtora em séries como “Os Simpsons”, “Murphy Brown”, “Charmed”, “Monk” e “NCIS”, entre muitas outras. Mais recentemente, escreveu piadas para o então presidente Barack Obama dizer no célebre jantar dos correspondentes da Casa Branca.
Um dos seus maiores traumas ocorreu durante a temporada que passou como integrante da equipe de
roteiristas do “Late Night”, talk show de David Letterman, em 1990. Num ambiente majoritariamente masculino, ela relata inúmeras situações de bullying e assédio mesmo. Em 2009, o apresentador sofreu chantagem após ter se envolvido com uma assistente.
O livro relata inúmeros “nãos” que a roteirista ouviu ao longo da carreira por ser mulher. Frases como: “Eles já têm duas mulheres na equipe, não vão querer contratar outra”. Ou: “A série ‘24 Horas’ não contrataria uma mulher. Tiveram uma e não deu certo”.
Em seu primeiro trabalho, ouviu o seguinte elogio do comediante Garry Shandling (1949-2016): “Você escreve como um cara”.
Parece óbvio, mas não é. E Scovell se vê obrigada a repetir no livro: “A capacidade de fazer as pessoas rirem não está ligada a nenhuma característica física, incluindo cor de pele, cor do cabelo, tamanho do nariz, tamanho do pênis ou a falta dele”.
O ator e diretor Albert Brooks a ajuda, dizendo: “Na minha experiência, uma amostra mais justa da humanidade sempre produzirá comédia melhor”.
A propósito, Scovell reconhece: “Quero deixar claro que não acredito que apenas mulheres podem escrever papéis femininos e apenas homens podem escrever papéis masculinos”. Mas adiciona: “Emoções são universais, mas experiências, não”.
A autora também observa: “Sempre que ouço um produtor de TV falar: ‘Adoraríamos ter mais roteiristas mulheres, mas não conseguimos encontrar nenhuma’, minha resposta é: Vocês não estão procurando direito”.
“Só as Partes Engraçadas” não é o primeiro livro a discutir a questão de gênero em Hollywood. Já falei aqui na coluna, em outros momentos, de dois deles —o pioneiro “A Poderosa Chefona” (2011), de Tina Fey, e o mais recente “Stealing the Show” (2018), de Joy Press, inédito no Brasil.
É interessante observar como o assunto permanece em pauta nos Estados Unidos. Assim como a questão da diversidade racial. Mesmo ocorrendo avanços, aos trancos e barrancos, os problemas continuam sendo discutidos publicamente.
Acho um bom exemplo para o Brasil. Aqui, ainda, qualquer tentativa de tratar dessas questões é rebatida infantilmente com o bordão “isso é mimimi”. Não é.