Trump e Bolsonaro investem em falas ofensivas para manter bases de apoio

​O processo de desumanização dos opositores é bem marcado na Alemanha no período entre 1920 e 1930.

Naquele tempo, judeus eram chamados de ratos e traidores, em uma alegoria do que aliados de Adolf Hitler (1889-1945) acreditavam ser necessário eliminar da sociedade.

Quase cem anos depois, Donald Trump faz uso do mesmo expediente para se referir a parlamentares de oposição que representam minorias nos EUA, como negros, hispânicos e muçulmanos, que viriam de “lugares infestados de crimes e ratos”.

A tática é usada para acentuar a polarização entre os americanos e faz parte do projeto político para manter o presidente no poder. 

Os ataques não são frutos de rompantes espontâneos, mas comentários conscientes em reação ao que Trump considera uma ameaça a ele ou a seu governo. Especialistas usam a expressão “pugnacious” para definir a ação, que significa que ele está sempre pronto para brigar.

“Na política, a palavra é componente da ação. O tom faz essa música das facções, do ódio e do desentendimento”, explica Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil durante as gestões de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.

O ex-chanceler traça um paralelo claro entre o modo de operar do americano e o de Jair Bolsonaro, que, nos últimos dias, também disparou sequência de falas com conteúdo falso e preconceituoso que foge ao decoro do cargo.

O risco dessas escaladas, afirmam especialistas à Folha, é o enfraquecimento da democracia e a normalização do ódio, nocivos à sociedade.

Em três semanas, Trump insultou o pastor e ativista de direitos civis Al Sharpton, o deputado democrata Elijah Cummings e as quatro congressistas de oposição conhecidas como “o esquadrão”.

Vociferou que as deputadas deveriam “voltar e ajudar a consertar os lugares quebrados e infestados de crime de onde vieram” —todas têm cidadania americana— e se referiu à cidade de Baltimore, representada por Cummings, como uma “área nojenta, infestada de ratos e roedores”.

Bolsonaro, por sua vez, atacou governadores nordestinos, disse que dados divulgados pelo próprio governo sobre desmatamento na Amazônia estavam errados e ironizou o desaparecimento do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil durante a ditadura militar no país.

O líder brasileiro, explica Lafer, surfa no clima de desconfiança nas instituições, enquanto o chefe da Casa Branca é bem-sucedido em mobilizar descontentes com resultados da dinâmica político-econômica dos últimos anos.

A escolha das palavras do americano e a forma agressiva de se dirigir aos opositores fazem parte do “método por trás da loucura”, explica o professor Elcior Santana, da Universidade Georgetown, em Washington.

Na sua avaliação, Trump se baseia em pelo menos quatro elementos para tentar manejar a narrativa de sua presidência: diversionismo, prevenção, intimidação e defesa. 

Quando se sente contrariado, diz o professor, apela a generalizações, ofensas e mentiras que servem tanto para esconder fatos quanto para desviar a atenção de decisões controversas tomadas por seu governo.

Danyelle Solomon, do Center of American Progress, concorda com a tese e diz que, enquanto energiza seu eleitorado cativo, o presidente produz o ambiente perfeito para se manter no poder.

“Trump está usando o racismo como estratégia para dividir o país. Mas também usa a divisão para manter o controle. Se você tem pessoas brigando entre elas, é mais fácil focar sua agenda e beneficiar um grupo seleto.”

Para Santana, Bolsonaro copia um roteiro que avalia ter dado certo, já que Trump mostrou ser possível assumir a presidência sem baixar o tom que já adotava antes de entrar na Casa Branca.

Trump e Bolsonaro dizem que suas fileiras verborrágicas não são estratégia política, e aliados de ambos os lados embalam as frases em cortinas de impulsividade e ressentimento. Nada além disso.

A difamação do democrata de Baltimore, por exemplo, aconteceu após o congressista pedir acesso a documentos recebidos pela filha e pelo genro de Trump, com dados sobre suas finanças pessoais.

O brasileiro, por sua vez, atacou o pai do presidente da OAB em razão das apurações, para ele não satisfatórias, sobre a facada que levou durante a campanha eleitoral em 2018.

A professora Angela Ocampo, da Universidade de Michigan, avalia que é mais valioso para os políticos manter o caráter autêntico das declarações do que assumi-las de maneira deliberada.

“No caso de Trump, sua base gosta que ele não seja politicamente correto. É importante mostrar que ele não está fazendo isso de um jeito pensado, que é parte de sua personalidade.”

Frases de Donald Trump

“Por que todas essas pessoas desses países de merda vêm parar aqui? Por que nós precisamos de mais haitianos?"
janeiro de 2018, durante reunião no Salão Oval sobre política migratória

"Por que Kim Jong-un me xingaria me chamando de ‘velho’, sendo que eu nunca o chamaria de ‘baixo e gordo’?"
novembro de 2017, ao trocar ameaças com o norte-coreano

"Por que elas não voltam e ajudam a consertar os países infestados de crimes de onde vêm?"
julho de 2019, sobre quatro deputadas democratas

"[Baltimore] é é um desastre repugnante, infestado de ratos e roedores"
julho de 2019, ao atacar o democrata Elijah Cummings, que representa a cidade

"Não há estratégia"
30 de julho de 2019, ao responder críticas às declarações sobre Cummings

Frases de Jair Bolsonaro

“Sou assim mesmo, não tem estratégia"
30 de julho de 2019, em entrevista ao jornal O Globo

"Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele" 
julho de 2019, sobre Fernando Santa Cruz Oliveira, desaparecido após ter sido preso por agentes da ditadura

"Se eu te chamar de feia agora, acabou o mundo. Todas as mulheres vão estar contra mim"
julho de 2019, respondendo à repórter Isadora Peron, do jornal Valor Econômico

"Daqueles governadores de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão"
julho de 2019, durante conversa com o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil)

"Ele [Glenn] é casado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro, malandro, para evitar um problema desse [deportação], casa com outro malandro e adota criança no Brasil"
julho de 2019, sobre o jornalista Glenn Greenwald

Para o ex-chanceler Lafer, o enredo pode não ser formulado com todas as qualidades que prescindem um pensamento tático, mas é fruto de um instinto estratégico do americano.

A mesma lógica vale para Bolsonaro. Os dois dizem que não vão mudar, porque sabem que a retórica da campanha, baseada no ódio aos inimigos, traz benefícios eleitorais entre os conservadores.

Nos Estados Unidos, onde há o sistema de colégios eleitorais —ou seja, as eleições ocorrem por voto indireto—, o foco nos nichos específicos de eleitores tem vencido a eleição desde 2008, com Barack Obama.

O democrata apostou nos jovens e negros para ser eleito e reeleito, e Trump volta à carga justamente contra esses grupos para repetir em 2020 o apoio que o fez vencer em 2016.

Ao contrário do americano, Bolsonaro foi eleito pelo voto popular. Depois de atacar governadores nordestinos, recuou —porque não pode desprezar uma região com 40 milhões de eleitores.

Ainda assim, mesmo para Trump, replicar o resultado dessa estratégia na eleição de 2020 não está garantido.

Pesquisas mostram que 51% da população americana classificam o presidente como racista, e 59% desaprovaram, por exemplo, seus comentários sobre as congressistas.

Santana, professor de Georgetown, diz que o presidente tenta jogar os democratas para o espectro mais à esquerda do campo político na tentativa de evitar que republicanos descontentes com ele migrem o voto no ano que vem.

A retórica do ódio não é uma novidade na política americana. A preocupação dos especialistas, porém, é a normalização quando ecoada com vigor e frequência pelo presidente.

“Trump tem normalizado o uso de linguagem racista. Ele estimula e legitima as pessoas a terem esse tipo de comportamento”, afirma Ocampo, da Universidade de Michigan.

Ela lembra que o autor do penúltimo ataque a tiros nos EUA —ocorrido na Califórnia— usava esse tipo de discurso em suas redes sociais.

A revolta da classe média com a crise econômica pode explicar a apatia de parte da população diante do comportamento dos presidentes.

Os EUA contabilizam bons índices econômicos atualmente, e Trump sustenta parte de seu apoio nesses números.

Bolsonaro tem tido dificuldade para tirar o Brasil da estagnação, mas se ancora na promessa de que aprovará as reformas previdenciária e tributária, o que alavancaria a economia do país. 

É cedo para saber como a democracia reagirá aos presidentes, mas é consenso entre analistas que é preciso evitar que a sociedade caia em uma espiral do silêncio. 

A teoria que leva o nome da cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann (1916-2010) mostra que pessoas omitem sua opinião quando conflitantes àquela dominante por medo de isolamento e crítica.

Trump e Bolsonaro testam até onde é possível ir ao dividir seus países entre amigos e “inimigos do povo” —termo usado pelo americano muitas vezes para se referir à imprensa.

Lafer, por sua vez, afirma acreditar que quanto mais eles recrudescerem, mais resistências enfrentarão.

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