Títulos não diminuem desconfiança sobre Fellaini na Inglaterra

O primeiro treinador de Marouane Fellaini na Inglaterra bateu o martelo no último minuto.

Foi só às 22h de 31 de agosto de 2008 - o dia em que se fecharia a janela de transferências - que David Moyes, treinador do Everton, viajou de jatinho a Bruxelas para fechar o negócio.

Ele vacilou por um bom tempo antes de decidir ir adiante: o dinheiro era sempre curto no Everton, então, e Moyes batalhava para não gastá-lo levianamente, e para não correr riscos desnecessários. Fellaini por fim disse sim ao contrato em um quarto de hotel, apenas alguns minutos antes que o prazo para transferências se encerrasse.

Moyes também foi o primeiro treinador de Fellaini no Manchester United. Eles haviam trabalhado juntos por cinco anos no Everton, mas mesmo assim o treinador não estava completamente seguro, e por isso consultou antigos colegas para tentar descobrir se a contratação seria sábia.

Ele passou boa parte da janela de transferência de meio de ano em 2013 buscando contratação mais glamourosa, para reduzir o interesse da mídia por Fellaini.

Louis van Gaal –o segundo treinador permanente de Fellaini no Old Trafford (o estádio do Manchester United)– não tinha dúvidas. Tão logo chegou, avisou a Fellaini que o jogador não estava em seus planos.

"Ele disse que eu não era sua primeira escolha, segunda escolha, terceira escolha, quarta escolha", é como o belga recorda a cena. Mas o treinador não demorou a mudar de ideia.

O terceiro treinador, José Mourinho, telefonou para Fellaini pouco depois de aceitar o posto, para garantir que tinha fé no jogador. O treinador disse que Fellaini não sairia do clube enquanto ele estivesse no comando. Mas isso não necessariamente representou uma mudança completa de opinião em todos os níveis do clube.

A hierarquia do United vacilou antes de assinar uma extensão de seu contrato, no ano passado. Mais de uma vez, o treinador e os colegas de elenco tiveram de sair em defesa de Fellaini, depois de expressões de descontentamento quanto ao seu jogo por parte de pelo menos alguns dos torcedores do clube.

Faz pouco mais de uma década que Fellaini chegou à Inglaterra. Nesse período, ele jogou 254 partidas no Campeonato Inglês, marcando 54 gols. Foi escalado como médio-volante, meia e atacante. Conquistou uma Copa da Inglaterra, uma Copa da Liga Inglesa e um título da Liga Europa. E jogou duas Copas do Mundo, na mais recente ajudando a Bélgica a chegar à semifinal, e uma Eurocopa.

É um currículo impressionante, e a recompensa por ele, quase todo mundo concordaria, é uma longa e ilustre carreira na Premier League. As referências dele são igualmente impressionantes. Mourinho o definiu como "mais importante do que você pode imaginar". Roberto Martínez, que o treinou brevemente no Everton e agora é seu comandante na seleção nacional belga, o encara como "vencedor e guerreiro".

Todos que trabalharam com o atleta oferecem uma lista quase infinita de qualidades em campo - esforço, energia, mais talento do que as pessoas costumam reconhecer nele, talento no jogo aéreo e "a melhor matada de peito do esporte", de acordo com Andy Holden, seu primeiro treinador no Everton. "Um jogador capaz de fazer qualquer coisa", em suas palavras, e sempre determinado a melhorar.

"Ele é um crédito para sua família, realmente", disse Holden. "Chegava mais cedo para malhar antes dos treinos. Malhava depois dos treinos. Sempre se esforçava por ouvir. Sempre quis aprender". Fellaini, diz o treinador, sempre fazia questão de agradecer os técnicos depois de cada treino. "Isso é bastante raro, em minha experiência".

Muitos de seus oponentes têm lembranças diferentes, mas também repletas de admiração. Steven Gerrard, que o enfrentou em muitos jogos com a camisa do Liverpool, disse que jogar contra ele era "horrível". E seus colegas de time provam que isso não é só conversa.

No começo do mês, o time de Mourinho estava perdendo em casa por dois gols de diferença contra o Newcastle, e a torcida estava a ponto de se rebelar. O treinador perguntou a Paul Pogba no intervalo que mudanças ele deveria fazer. Pogba pediu para jogar mais centralizado no meio de campo, e que Fellaini fosse colocado para jogar mais à frente.

Apesar de todas as suas realizações, e de todos os depoimentos positivos de colegas e adversários, até mesmo Fellaini reconhece não ter exatamente conquistado o futebol inglês, não completamente; as dúvidas, as mesmas que Moyes, Van Gaal e outros exibiram, persistem, em alguns quadrantes. Uma década mais tarde, a Inglaterra continua a não saber como classificar Marouane Fellaini.

É "difícil demais", ele avaliou em uma entrevista algumas semanas atrás, avaliar como o futebol inglês o vê. "As pessoas acham que sou louco, agressivo, mas não sou", ele disse, sentado em um hotel de Manchester, logo depois do final de um treino.

"Não recebo cartões amarelos ou vermelhos; na temporada passada, levei um amarelo. Sou físico, não agressivo. Bem agressivo com a bola, mas não chuto pessoas".

Como ele gostaria de ser visto? "Como um jogador que conhece suas qualidades", disse. E suas limitações: "Sei o que posso e o que não posso fazer".

A noite anterior serviria como bom exemplo disso: o desempenho do jogador foi como uma versão destilada, quase que um clichê, do futebol de Fellaini. Vindo da reserva –"as pessoas acham que não jogo, mas jogo. Eu jogo"– ele marcou um gol nos acréscimos, aos 50 minutos do segundo tempo, para empatar o jogo contra o Derby County, na Carabao Cup, se lançando na direção da bola para cabecear um cruzamento que levou o jogo à decisão por pênaltis.

Na cobrança de pênaltis, ele bateu e converteu o seu. Surpreendentemente, foi o primeiro pênalti que ele bateu em sua carreira em uma decisão por pênaltis. "Se posso fazer alguma coisa, faço", ele disse. "Se não, passo a bola para alguém".

Isso é típico de sua abordagem - quanto a si mesmo, quanto ao seu trabalho. Fellaini é belga; seus pais são marroquinos. Mas por estilo e inclinação, há algo de muito inglês nele, como jogador. A forma pela qual ele joga - corajosa, cheia de raça, esforçada - e a maneira pela qual ele pensa - modesta, humilde e despretensiosa - são os valores que o futebol inglês sempre buscou preservar.

Fellaini não tem a ilusão de que é um jogador capaz "de driblar sete adversários" e marcar um gol, mas isso nunca tendeu a importar para a torcida inglesa. Muitas vezes, de fato, esse tipo de talento desperta suspeitas. Há qualidades intangíveis muito mais importantes - vontade, raça, caráter - e pouca gente contestaria que Fellaini as tem de sobra.

"Minha jornada, minha vida, não foi fácil", ele disse. "Tive de batalhar". Ele não surgiu para o futebol nas bem equipadas escolinhas de um grande clube. Foi rejeitado pelo Anderlecht, o maior clube da Bélgica, quando adolescente. Batalhou para abrir caminho em diversos clubes menores, orientado por seu pai, até que o Everton, e depois o Manchester United, surgissem.

Sua abordagem o beneficiou. Em seu primeiro ano no United, especialmente, ele foi vítimas de ataques muito venenosos. Foi o período mais difícil de sua carreira, ele disse. "Havia muita pressão, muitas críticas. Não foi uma boa experiência, mas foi importante vivê-la. Saí daquilo mais forte. Passei no teste. Conquistei minha vaga. Ganhei troféus".

Para muita gente, ele foi o principal jogador na vitória contra o Ajax que garantiu o título da Europa League ao Manchester United em 2017, o melhor resultado na passagem de Mourinho pelo clube.

Ele provou que tem de sobra as qualidades que a Inglaterra aprecia, de uma maneira que talvez não se aplique a outros jogadores. "É preciso coragem para jogar pelo Manchester United", disse Fellaini.

"Personalidade, força mental. Há grandes expectativas. É um grande clube, o maior da Inglaterra. Todo mundo quer nos derrotar". Ainda que ele mesmo não o diga, é justo afirmar que nem todos os jogadores com quem ele dividiu o gramado em Old Trafford nos últimos cinco anos atendem a esses requisitos.

Por que, então, o relacionamento dele com sua torcida continua complicado?

"Existe uma diferença entre mídia social e os torcedores que vão aos jogos", disse Andy Mitten, editor do United We Stand, um dos fanzines mais antigos do Manchester United. "Existem muitas críticas online. Mas creio que quem vai ao estádio o aprecia mais".

Quando o clube jogou em Berna recentemente, na Champions League, Mitten ouviu torcedores cantando uma música que celebra o belga. Ele admite que é improvável que ela se torne um hino. Para muita gente, a presença de Fellaini, ou de um jogador como ele, representa o relativo "declínio" do clube nos últimos anos. "Ele simboliza a situação atual do United", diz Mitten.

Essa é a maneira mais popular de interpretar sua carreira no Old Trafford. Mas existe outra, que vê Fellaini não como sintoma do domínio que o United perdeu mas como sobrevivente dessa decadência. "Trocas de treinador não são fáceis", ele disse. "Mudanças de jogadores, saídas de jogadores, nada disso é fácil. É preciso tempo para construir um time".

Nos últimos cinco anos, o United não teve muita calma. Fellaini é um dos raros pontos fixos em meio ao tumulto. Nenhuma outra contratação do período posterior à aposentadoria de Alex Ferguson se provou tão duradoura. "Creio que ele não tenha sido tão valorizado quanto merece", disse Holden, ex-treinador e ainda amigo de Fellaini. "Espero que isso tenha mudado agora".

Fellaini não se incomoda muito com a maneira pela qual é visto fora de seu clube, mas admite que ouvir "os assobios e vaias" dos torcedores adversários serve como inspiração, e não o desencoraja. "Você quer mostrar o quanto é bom", ele disse.

Que ele não receba o respeito que costuma ser conferido a outros jogadores com o seu retrospecto talvez possa ser entendido como cumprimento. Como disse Gerrard, é horrível jogar contra ele. Mas é possível que haja outros fatores ocultos: Fellaini pode ser uma manifestação de valores que o futebol inglês se convenceu a ver como antiquados, relíquias de um passado esquecido às pressas.

Gerrard, imediatamente depois de admitir sua admiração pelo antigo rival, descreveu Fellaini como "um plano B efetivo", o jogador a que um time pode recorrer se precisar jogar "feio". Mesmo Holden admite que o futebol de Fellaini nem sempre é bonito. Em um momento em que a estética é o que importa, isso basta para atrair desdém.

Fellaini se irrita com a descrição. Em parte por ela minimizar o lado técnico de seu jogo mas principalmente porque ser reserva às vezes é parte do trabalho de um jogador. "Se o treinador me coloca no banco e diz que vou jogar 30 minutos, é o que faço", ele diz. "Batalho para entrar em campo em todos os jogos, mas trabalho para o treinador".

Para ele não importa que não seja visto como um jogador sutil, artístico. Os gols que ele marca podem nem sempre ser bonitos, mas valem a mesma coisa que todos os outros. "De um escanteio, de falta, de pênalti: gol é gol", ele disse.

Por muito tempo, a Inglaterra teria sido o habitat natural para um jogador como ele. Agora, parece relutar um pouco em abraçá-lo. Fellaini está aqui há 10 anos. Convenceu cinco treinadores, dezenas de colegas de equipe, milhares de torcedores. Sabe que está em seu lugar.

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