Ultradireita cresce na Espanha em resposta a separatismo catalão
Até cerca de um ano e meio atrás, a Espanha era vista como um dos últimos países da Europa ainda a salvo do avanço vigoroso da direita ultranacionalista sobre corações e mentes. Ao menos no plano político-partidário, os ibéricos resistiam ao canto da sereia do ufanismo que escamoteia xenofobia e, muitas vezes, faz par com ataques a direitos e conquistas de minorias.
Pois a fortaleza ruiu. Fundado em 2013 com um discurso anti-imigrantes, em prol do Estado mínimo e da recentralização do poder em Madri (em oposição à delegação de prerrogativas às comunidades autônomas), o Vox assentou acampamento em uma espécie de terra de ninguém do espectro espanhol. Depois de estrear no Parlamento andaluz, deve conquistar cadeiras no Legislativo federal pela primeira vez em abril.
A extremidade conservadora em que a legenda fixou âncora era ainda há pouco vista como radiativa por boa parte da opinião pública, por causa da memória relativamente recente da ditadura de Francisco Franco (1939-75).
Partidos da mesma família ideológica surgidos na década anterior, como o Plataforma para a Catalunha e o Espanha 2000, alcançavam votações inexpressivas em escala nacional, não oferecendo ameaça ao tabu.
Foi então que o noticiário resolveu dar um empurrãozinho ao Vox. Em outubro de 2017, a campanha do governo da Catalunha pela independência da região culminou com um plebiscito declarado inconstitucional e ilegal por Madri, que fez o que pôde para atrapalhar a logística da votação e reprimiu militantes da causa, deixando centenas de feridos.
“Em contraponto ao separatismo catalão, houve uma legitimação da afirmação da identidade nacional espanhola, de símbolos como a bandeira”, diz Hubert Peres, pesquisador do Centro de Estudos Políticos da Europa Latina e professor na Universidade de Montpellier (França).
Segundo ele, voltou a ganhar relevo uma concepção unitária do país, a ideia de uma só “grande Espanha” –e o conceito agora se dissociava de sua carga de nostalgia franquista.
Soou como música para os ouvidos de um partido que defendia justamente o fim da autonomia das 17 regiões espanholas e a supressão das legendas separatistas da Catalunha e do País Basco.
Para o cientista político Pablo Simón, professor na Universidade Carlos 3º (Madri), o Vox surfa na onda da insatisfação de uma parcela do eleitorado conservador com a maneira como o Partido Popular (PP), que encarna o establishment de direita na Espanha e estava no poder central em 2017, conduziu a crise secessionista catalã.
“Esse grupo acha que o PP foi muito brando, teria gostado de um pulso mais firme [com movimento de independência]”, afirma ele. “Por outro lado, quando os socialistas voltam ao governo [em junho de 2018], depois de aprovarem uma moção de censura contra o premiê Mariano Rajoy com a ajuda dos separatistas, reabrem o diálogo com estes, o que também melindra os direitistas mais radicais.”
A réplica não tardou. Em dezembro passado, os 400 mil votos do Vox na eleição da Andaluzia se traduziram em 12 deputados no Legislativo regional e, mais importante, no fim de uma hegemonia socialista de 36 anos no comando local. O neófito agora dá suporte à dobradinha governista PP-Cidadãos (centro), mas não é parte integrante da gestão andaluza.
O fiel escudeiro não é assim tão fiel. Uma pesquisa realizada após o pleito regional mostrou que mais de 50% dos eleitores do Vox haviam votado no PP nas eleições gerais (nacionais) de 2016. Outros 23% tinham escolhido o Cidadãos dois anos antes.
Em outros países europeus, a chegada maciça de imigrantes no meio da década tem sido apontada como mola para agremiações de ultradireita. Mas os analistas divergem sobre o peso desse fator na Espanha.
“Cabe lembrar que o Vox teve seus melhores desempenhos na Andaluzia nas áreas em que há mais imigrantes”, aponta Peres. “Voltamos a ver barcos desembarcarem às praias espanholas coalhados de migrantes. Pedro Sánchez [premiê socialista] até recebeu embarcações para as quais outros países, como a Itália, tinham fechado seus portos.”
Simón discorda. “A Espanha é a porta de entrada, mas não o destino final de muitos dos migrantes, que seguem até a Europa central. A imigração não ocupa lugar de destaque no debate público. Trata-se de um tema de verão, quando a imprensa está sem assunto.”
Além disso, segundo ele, a maior parte dos viajantes vem da América Latina, região que inspira no Vox certa “simpatia cultural, que passa pela identificação com o reacionarismo católico”.
Onde os dois comentaristas convergem é na avaliação de que a situação econômica do país (que cresceu 3% em 2017 e 2,5% em 2018, níveis invejáveis no circuito europeu) não influi no ganho de musculatura da ultradireita ibérica. O programa do Vox nessa rubrica, aliás, é enxuto, consistindo basicamente na promessa de redução da carga tributária.
“O eleitor padrão do partido é de classe média, classe média alta, ou seja, não está nos grupos mais atingidos pela crise iniciada em 2008, ao contrário do que vemos em outros países em que a direita radical cresce”, explica Simón. “Na Espanha, os mais afetados tendem a votar nos socialistas e no Podemos [esquerda radical].”
Nos costumes, a legenda mira reverter as leis que permitiram o aborto e o casamento gay, além de colocar em questão o espaço ocupado na sociedade espanhola pelo debate em torno da igualdade de gênero, que seria dominado por um feminismo sectário de viés esquerdista—o Vox, por sinal, não se associou às manifestações, na sexta (8), pelo Dia Internacional da Mulher.
No fim de fevereiro, a dois meses da eleição que deve garantir seu ingresso na Câmara de Deputados madrilena, o partido oscilava entre 10% e 12% das intenções de voto, segundo a pesquisa. Aparecia atrás de socialistas, PP, Cidadãos e Podemos, nesta ordem.
Mas tudo indica que terá papel central na nova legislatura, seja pautando o endurecimento da oposição a uma eventual coalizão governista de esquerda, seja na pele de aliado providencial de uma frente conservadora. Não vai faltar voz ao Vox.