Um incêndio, uma porta trancada e 41 meninas mortas enquanto a polícia não fez nada
Enquanto o fogo tomava conta da sala de aula, as súplicas das 56 meninas trancadas dentro dela começaram a silenciar.
A maioria das meninas já estava inconsciente ou ainda pior. Um silêncio assustador tomou o lugar de seus gritos de pânico.
As policiais que montavam guarda diante da porta –e que tinham se recusado a abri-la, apesar dos gritos— esperaram nove minutos antes de entrar. Buscaram água para esfriar a maçaneta, que estava fervendo.
Dentro da sala, dezenas de meninas colocadas sob a guarda do estado guatemalteco estavam espalhadas pelo chão enegrecido. Quarenta e uma delas haviam morrido.
Foi uma das tragédias mais letais na Guatemala desde o final da guerra civil nesse país, décadas atrás, e aconteceu dentro de uma casa de acolhida de adolescentes em situação de risco que haviam sido internadas ali pelo governo, supostamente para sua própria proteção.
Agora, dois anos mais tarde, tiveram início os julgamentos dos funcionários públicos acusados de terem deixado de prevenir as mortes.
Mas uma revisão de mais de duas dúzias de arquivos de caso de vítimas e sobreviventes, além dos interrogatórios de familiares, funcionários do lar de acolhida e funcionários públicos, revela um padrão de abusos físicos, psicológicos e sexuais cometidos no local ao longo de anos.
Seis crianças já haviam morrido no estabelecimento, administrado pelo governo, entre 2012 e 2015, a maioria de complicações de saúde evitáveis, disseram funcionários. As autoridades também estudam 25 episódios de abuso denunciados nos anos que antecederam o incêndio.
Além disso, segundo entrevistas com membros das famílias de três meninas, várias das meninas haviam dito a seus familiares muito antes da tragédia que foram forçadas a fazer sexo com homens mais velhos que não conheciam.
Estelita de Jesus Chutan Urrias, irmã de uma das meninas que morreu no incêndio, disse: “Quando fui vê-la um mês antes do incêndio, ela me implorou para tirá-la dali. Disse que estavam fazendo mal a ela. Ela me contou que eles tiravam algumas meninas do lugar à meia-noite, as banhavam, as vestiam e forçavam a fazer sexo com desconhecidos”.
As mortes são um reflexo da passagem cruel à idade adulta vivida por muitas meninas adolescentes na Guatemala, uma jornada frequentemente marcada pela miséria, a violência e o desespero.
O país possui um dos maiores índices mundiais de gravidez na adolescência, e a taxa de homicídios de mulheres é uma das mais altas do mundo.
“Ser menina na Guatemala significa correr risco, e é assim há gerações”, comentou Marwin Bautista, subsecretário do Ministério do Bem-Estar Social responsável pelos lares coletivos de acolhida.
“Este foi um fracasso da instituição. E, para ser franco, não aconteceu do nada, simplesmente. Foi o resultado medonho de anos de descaso e problemas.”
A tragédia começou com uma tentativa de fuga. Quase cem das crianças do estabelecimento, conhecido como Lar Seguro Virgem de Assunção, tinham decidido empreender uma fuga em massa.
Mas funcionários as cercaram e as trancaram dentro do estabelecimento –os meninos em um auditório amplo e as meninas numa pequena sala de aula com capacidade para poucas pessoas.
Depois de passarem horas trancadas na salinha, sem poderem usar o banheiro, alguém acendeu um fósforo, achando que um incêndio obrigaria a polícia a deixá-las saírem.
Em vez disso, a maioria das meninas morreu, enquanto uma dúzia de policiais ficaram discutindo se sua supervisora, a três metros de distância, deveria ou não abrir a porta com as chaves penduradas de seu cinto.
Durante esses minutos o fogo devorou os colchões baratos de poliestireno dados às adolescentes para dormirem, queimando-as, enquanto a fumaça tóxica foi silenciando seus gritos de socorro.
As meninas, que não haviam infringido nenhuma lei e não representavam ameaça alguma à sociedade, eram vítimas mesmo antes do incêndio.
Sendo vítimas de abuso sexual, violência ou abandono, muitas vezes por parte de suas famílias, o governo as encaminhara à instituição para sua própria segurança. Teoricamente, o mundo externo representava o maior risco para elas.
“São meninas que já foram abusadas, às vezes estupradas, por membros de suas próprias famílias”, disse Norma Cruz, diretora do grupo Sobreviventes, que representa as famílias de quase duas dúzias de vítimas. “As meninas foram internadas ali para sua própria proteção.”
O Lar Seguro Virgem de Assunção foi criado para crianças e adolescentes que não têm outro lugar para ir. Aberto em 2010, abrigava meninos e meninas desde a primeira infância até os 17 anos em um centro com portões fechados na periferia da capital, Cidade da Guatemala.
A fuga era um tema constante no local. Apenas entre setembro e novembro de 2016, mais de 90 crianças fugiram, segundo promotores que indiciaram mais de uma dúzia de funcionários por envolvimento com o incêndio.
Jornalistas guatemaltecos divulgaram relatos angustiantes de abusos cometidos no estabelecimento desde 2013 –comida putrefata, roupas de cama imundas que provocavam doenças de pele, funcionários violentos.
Em fevereiro de 2017, outro grupo de menores começou a planejar uma fuga.
Começou no dia 14 de fevereiro, quando as crianças tiveram permissão de passar tempo juntas. Dezenas de meninos e meninas combinaram um dia para fugirem, mas a notícia do plano começou a vazar.
Por volta da hora do almoço de 7 de março duas meninas fingiram que estavam brigando na cantina, atraindo funcionários para a confusão.
As outras crianças fugiram.
Quase cem crianças ao todo escalaram os muros externos do centro e pularam em uma vala íngreme, algumas se machucando na queda. Elas se espalharam por um riacho, correndo em direções diferentes.
Às 14h30 as autoridades já haviam recapturado as crianças e as levado de volta ao centro, onde foram deixadas ao ar livre no frio durante horas enquanto os funcionários discutiam o que fazer.
Segundo o protocolo, os funcionários teriam que aguardar a chegada de uma magistrada para então decidir como proceder. Mas a magistrada não apareceu, apesar de ter recebido vários chamados exigindo sua presença. O julgamento dela começou esta semana.
Por volta da meia-noite os funcionários decidiram trancar as crianças em locais fechados até a juíza chegar. Cinquenta e seis meninas foram encerradas numa sala de menos de 46 metros quadrados, com 23 colchões de poliestireno para dividir entre elas. Uma menina tinha fraturado a pelve na tentativa de fuga. Outra estava grávida, se bem quem nem ela nem os administradores soubessem disso na época.
Quinze policiais femininas foram encarregadas de vigiar as meninas. Elas receberam as chaves da sala de aula trancada e foram instruídas a não deixar ninguém sair.
Às 6h da manhã seguinte, ainda molhadas e com frio, as meninas começaram a reclamar. Precisam ir ao banheiro. Sem ter outra saída, puseram dois colchões em pé para criar uma latrina improvisada.
Passaram-se horas. Então uma menina, farta de esperar, acendeu um fósforo na esperança de forçar as policiais a abrirem a porta.
A policial em comando disse aos promotores mais tarde que arriscou a vida para salvar as meninas. Mas os registros telefônicos aos quais os investigadores tiveram acesso mostraram que ela estava ocupada discando números em seu telefone, e testemunhas disseram que ela descartou a urgência ao falar com suas subordinadas.
“Elas já escaparam uma vez hoje”, teria dito a comandante, segundo depoimentos de cinco testemunhas. “Que escapem de novo se são tão duronas assim.”
Os meninos e meninas no centro estava acostumados a conviver com a crueldade das ruas. Para muitos, ela os acompanhou para o lar de acolhida.
As acusações incluem abusos físicos e sexuais de crianças pelos funcionários, superlotação e condições imundas. A divisão de direitos humanos da procuradoria-geral está investigando 25 acusações de abuso entre 2016 e 2017, segundo Claudia Maselli, que comanda o gabinete.
Para os promotores, porém, essas investigações ficam em segundo plano diante do incêndio, a culminação fatal de muitos desses problemas.
Quase todas as meninas tinham convivido com a pobreza profunda e onipresente que transformava mesmo os elementos mais básicos da vida em um calvário. Muitas haviam fugido de casa por uma série de razões, incluindo violência física e sexual por parte de familiares.
Mesmo quando era criança, Indira sofrera violência: foi sexualmente abusada por seu pai, agora na prisão, e sua mãe não cuidava dela, segundo advogados que representam as famílias. Quando ela tinha 16 anos, após várias tentativas de fugir de casa, um juiz determinou que ela estaria em mais segurança em um centro de acolhida.
Em vez disso, Indira morreu no centro por inalação de fumaça, estendida no chão ao lado de outras meninas que compartilhavam histórias semelhantes à dela.
O incêndio também matou duas irmãs, de 12 e 14 anos. Como as outras meninas, elas nasceram na miséria, dividindo um barraco de um cômodo só com seus pais e dois outros irmãos.
Elas estavam sempre juntas; uma era quieta, e outra, extrovertida e brincalhona. Mas as duas tinham dificuldades grandes na escola, sofriam em casa e tinham começado a fugir de casa. A violência era uma parte corriqueira de suas vidas, especialmente quando a família as localizava, disseram os advogados.
Após uma longa série de intervenções, um juiz acabou encaminhando-as para o lar de acolhida, onde morreram juntas.
Quinze garotas conseguiram sobreviver ao incêndio, mas muitas delas agora carregam marcas físicas e emocionais profundas sobrepostas às que já traziam.
Uma menina sofreu queimaduras em 95% do corpo. O incêndio destruiu suas pálpebras, lábios e nariz. Para evitar os olhares de espanto ou escárnio de outras crianças, ela praticamente não sai mais ao ar livre.
Para algumas sobreviventes há esperança, especialmente em contraste com o que elas já sofreram. Uma menina de 14 anos estava grávida quando o fogo destruiu a sala de aula, se bem que ela não soubesse na época.
Ela sobreviveu ao incêndio, e seu bebê nasceu alguns meses mais tarde. Os promotores responsáveis pelo caso viraram a família extraoficial do bebê. Alguns chegaram a acompanhar o parto, em outubro passado.
“Nós a levamos a uma clínica particular para tratar das complicações e fazer uma cirurgia de emergência”, disse o promotor responsável pelo processo, Edgar Gomez. “Todos nós adotamos esse bebê.”
A jovem mãe, agora com 16 anos, está sob os cuidados do estado outra vez, juntamente com sua filha bebê.