Um sorvete, um vinho, uma massa

Florença: berço do Renascimento. A Vênus de Botticelli! O David de Michelangelo! O domo de Brunelleschi! A Ponte Vecchio sobre o Arno! E eu aqui querendo falar de um sorvete que tomei; de um vinho que bebi; de um macarrão que me fez chorar.

Passei o Carnaval nesta que é uma das cidades mais lindas do mundo. Foi minha segunda vez em Florença, mas contei como se fosse a primeira.

Nos idos dos anos 1980, mochileiro ainda, a cidade foi não mais que uma “passagem obrigatória” entre Roma e Milão. Viajando a Itália de trem, fiz ali uma escala de não mais de um dia, para ver as obras de arte. É provável que tenha pernoitado por lá, mas o que me lembro mesmo era da minha expectativa para chegar a Pisa.

Sim, confesso meio envergonhado que a Florença da minha juventude não foi mais que uma nota de rodapé nas minhas ainda toscas memórias de viajante. E foi justamente isso que eu quis corrigir nesta passagem. Fiz então um roteiro minucioso desta vez —e fui recompensado em dobro.

Dei uma sorte danada, pois além das obras-primas que mudaram o rumo da história da arte, Florença me ofereceu, em inspirados contrastes, pontes fascinantes entre o passado e o presente. 

No Palazzo Medici, por exemplo, além da quase uma hora que fiquei admirando a exuberante capela —pode parecer muito tempo numa sala de pouco mais de 20 metros quadrados, mas eu fiquei até pouco— descobri que a residência dos grandes patronos renascentistas abrigava uma exposição de trabalhos de Banksy, o maior trolador, quero dizer, artista contemporâneo. 

O efeito de ver seus grafites ultra politizados naquele ambiente foi arrebatador.

Ainda, visitando a Galleria degli Uffizi, sou brindado com esculturas de Antony Gormley, dentro e fora do prédio estupendo. Suas formas humanas dialogando com aquele cânone clássico eram algo emocionante de ver. E não vamos nem falar da vertigem provocada por aquele corpo colocado na beirada de um dos terraços, como que a se jogar na praça.

Tudo muito impressionante, mas aí tem o tal sorvete, o tal vinho, a tal massa. Começo por ela: num moderno restaurante, Simbiosi, peço um capeletti com trufas —e me arrependo. Calma: não há o que discutir quando o assunto é trufas. Mas colocar esse ingrediente precioso, típico da Toscana, no prato é meio como que fazer gol com a mão. 

Eu estava adorando, mas aí resolvi provar o simples espaguete alho e óleo que quem viajava comigo tinha pedido e desejei imediatamente trocar de prato! Eu nunca tinha comigo algo como aquilo. Muito simples: alho, pimenta calabresa, creme de espinafre e só. Mas que sabor.

No dia seguinte foi o vinho. Pedi à agência que organizou meu roteiro para visitar vinícolas de vinhos naturais. A primeira foi um espetáculo: uma herança de família inspirou uma jovem crítica de arte e seu marido arquiteto a reinventar a paixão deles pela produção da bebida. Tudo lindo, limpo, organizado.

Mas na segunda fazenda que visitei, era o caos: tambores de metal jogados no quintal, etiquetas rabiscadas no armazenamento, garrafões espalhados e —“peccato!”— um dos vinhos “laranja” (esse que está na moda) que provei foi tirado por sucção bucal de uma mangueira! No entanto, entre este e o anterior, adivinha de qual eu levei três garrafas?

E aí tem o sorvete, uma forma de arte na Itália; em Florença, uma perfeição. Entre tantas opções ao longo do Arno, escolhi a que tinha uma fila menor, e 20 minutos depois estava com um cone recheado de uma massa gelada de gergelim preto que era só o melhor sorvete que eu já tomei na vida.

Aí você pensa: tanta arte naquela cidade e eu aqui chamando a sua atenção para essas coisas tão pequenas? Ah, caro, cara, viajante: essas só são coisas menores para quem ainda não descobriu que o prazer de viajar não está só nas dicas surradas dos guias, mas nas descobertas mais espontâneas que você faz quando se lembra que a vida tem que ser simples. Bem simples.

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