Vaticano quer ponto de virada em reunião sobre abuso contra menores
O encontro tem nome forte o bastante para martelar a disposição em virar a página numa crise de longa data na Igreja Católica: o abuso sexual cometido por clérigos e acobertado por bispos contra crianças e adolescente.
A partir de quinta (21), o Vaticano promove por quatro dias “A Proteção dos Menores na Igreja”, com o papa Francisco e os 114 presidentes de Conferências Episcopais (instituições como a brasileira CNBB).
“Minha esperança é que as pessoas vejam isso como um ponto de virada”, disse o arcebispo de Chicago e um dos organizadores, Blase Cupich, a jornalistas nesta segunda (18).
E os casos por décadas abafados pela Igreja? Não interessa se o eram por “negação” ou por “cumplicidade criminosa, maliciosa”: o silêncio tem que acabar, afirmou o arcebispo de Malta, Charles Scicluna.
Isso dois dias depois de algo inédito na igreja: a expulsão de um ex-cardeal por crimes sexuais, o americano Theodore McCarrick, 88, acusado de molestar ao menos um adolescente, quatro décadas atrás.
Mas o otimismo é contido. No domingo (17), o papa pediu a fiéis que orassem pela reunião. Ativistas temem que os efeitos práticos dela não passem muito disso.
O próprio pontífice disse em janeiro que é preciso “desinflar as expectativas” para o encontro, que terá depoimento de vítimas.
“Li uma estatística: 50% dos casos são relatados. Só 5%, condenados. Terrível”, disse.
“O papa teme frustração por parte de quem observa de fora, pois não se tratará de tomar grandes decisões imediatas, mas de refletir, pedir perdão a Deus”, afirma Filipe Domingues, mestre pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e colaborador do Sínodo dos Bispos sobre Jovens.
Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador no Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, diz que, com tantos episódios no passado, “há um passivo alto que vai demorar para ser zerado”.
E há um poder papal reduzido, já que a autoridade intermediária (como bispos) nem sempre quer jogar luz “num escândalo em seu setor, o que pode complicar sua carreira”.
Como a lama de Brumadinho, compara Borba: “Será que o presidente da Vale queria varrer [eventuais riscos] para debaixo do tapete” ou assim decidiram diretores que queriam subir na empresa?
Notícias de abuso se replicam pelo mundo. No Brasil, um padre de Americana (SP) foi afastado em janeiro após a Folha revelar denúncias de abuso contra menores.
Em fevereiro, o arcebispo paraibano proibiu que religiosos frequentem a casa paroquial com jovens desacompanhados.
Se agora o Vaticano promete “tolerância zero” com os molestadores, Francisco foi criticado em 2018 por tratar acusações de vítimas no Chile como calúnia —depois se desculpou, e dois bispos locais
acabaram excomungados.
Marie Collins tinha 13 anos quando um capelão que prometeu a seus pais ficar de olho na filha, internada num hospital, a estuprou e tirou fotos dela.
“Ele me falou que era padre, não fazia nada de errado. Sabe, eu era uma criança dos anos 1950. Acreditei nele”, Marie, 72, rememorou em 2017.
Hoje voz proeminente no combate à pedofilia na Igreja, ela foi nomeada pelo papa, em 2014, para integrar uma comissão dedicada ao tema.
Três anos depois, Marie pediu para sair. À época reclamou de falta de recursos e “resistência cultural” no clero.
O Vaticano criou a comissão, ok, mas de nada adiantam “palavras bonitas em público e ações inversas a portas fechadas”, afirmou.
“Cheguei a um ponto em que não podia mais depender de esperança.”
Em janeiro, a ativista enviou uma carta aos organizadores do encontro desta quinta. Pede diretrizes claras para evitar que casos como o dela se repitam.
Uma delas: estabelecer o que, afinal, a Igreja entende por abuso de um menor.
Uma lei canônica, diz, é vaga ao citar “delitos contra o sexto mandamento”, o “não cometerás adultério”.
A tradição católica o toma por pecados contra a castidade em geral.
Ela sugere ser mais claro: abuso é “explorar sexualmente para sua própria gratificação ou a de terceiros”, o que pode envolver penetração, sexo oral, masturbação, beijo e “fricção por cima da roupa”.