Vídeo contradiz alegação de que forças de Maduro incendiaram caminhões de ajuda
A narrativa parecia apropriada para o governo autoritário da Venezuela: obedecendo a ordens do presidente Nicolás Maduro, as forças de segurança venezuelanas teriam incendiado um comboio de ajuda humanitária, enquanto milhões de pessoas em seu país estão doentes e passam fome.
O vice-presidente americano, Mike Pence, escreveu que “o tirano de Caracas dançou” enquanto seus asseclas “incendiavam alimentos e remédios”.
O Departamento de Estado lançou um vídeo dizendo que Maduro ordenara que os caminhões fossem queimados.
E a oposição venezuelana mostrou imagens dos caminhões em chamas, imagens que foram reproduzidas por dezenas de sites noticiosos e emissoras em toda a América Latina, dando-as como provas da crueldade de Maduro.
Há um problema, porém: parece que foi a própria oposição quem ateou fogo acidentalmente às provisões, e não os homens de Maduro.
Imagens inéditas às quais o NYT teve acesso e imagens lançadas previamente –incluindo algumas divulgadas pelo governo colombiano, que atribuiu o incêndio a Maduro— permitiram uma reconstrução do incidente.
A reconstrução sugere que a causa mais provável do incêndio tenha sido um coquetel molotov atirado por um manifestante antigoverno.
Em dado momento, uma bomba caseira feita com uma garrafa é atirada em direção aos policiais, que estavam bloqueando uma ponte que liga a Colômbia à Venezuela, para impedir a passagem dos caminhões com os alimentos.
Mas o pavio usado para acender o coquetel molotov se separa da garrafa e, em vez de voar em direção à polícia, chega a um dos caminhões.
Meio minuto mais tarde, o caminhão está em chamas.
O mesmo manifestante pode ser visto 20 minutos antes, em um vídeo diferente, atingindo outro caminhão com um coquetel molotov, mas desta vez sem atear fogo no veículo.
A queima dos alimentos e medicamentos, no mês passado, desencadeou uma condenação ampla do governo venezuelano.
Mais de 3 milhões de pessoas já abandonaram o país devido à crise humanitária provocada pela má gestão da economia sob o governo de Maduro.
Adversários políticos do presidente que permaneceram no país enfrentam a repressão de suas forças armadas; muitos foram detidos, torturados ou forçados ao exílio. Muitos manifestantes já foram mortos nos protestos de rua e há ainda mais feridos.
Muitos dos críticos de Maduro dizem que ele teria ordenado que os medicamentos fossem incendiados durante o impasse na fronteira, apesar de muitos venezuelanos estarem morrendo por falta de medicamentos nos hospitais.
Mas a alegação sobre o carregamento de medicamentos parece não ter fundamento, segundo vídeos e entrevistas.
A Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA (Usaid), principal fornecedora da ajuda parada na ponte internacional, não listou remédios entre suas doações.
Uma alta representante da oposição que estava presente na ponte naquele disse ao NYT que o carregamento queimado continha materiais de uso médico como luvas e máscaras, mas não medicamentos.
E videoclipes vistos pelo NYT mostram que algumas das caixas continham kits de higiene que, segundo os americanos, incluíam artigos como sabonete e pasta de dentes.
Mesmo assim, a acusação de que Maduro teria queimado medicamentos continua a ser repetida.
“Maduro mente sobre a crise humanitária na Venezuela, ele contrata criminosos para queimar alimentos e medicamentos destinados à população venezuelana”, escreveu John Bolton, assessor de segurança nacional do presidente Donald Trump, em mensagem postada no Twitter em 2 de março.
Depois de ser contatados pelo NYT sobre essas alegações, autoridades americanas divulgaram comunicado fazendo uma descrição mais cautelosa de como o incêndio começou.
“Relatos de testemunhas oculares indicam que o incêndio começou quando as forças de Maduro bloquearam com violência a entrada de assistência humanitária”, diz o comunicado, que não especificou que as forças de Maduro provocaram o incêndio.
Representantes americanos também destacaram que, quaisquer tenham sido as circunstâncias, eles consideram Maduro responsável porque ele não permitiu a passagem dos caminhões de assistência naquele dia, punindo venezuelanos que estão passando necessidade.
“Maduro é responsável por criar condições para a violência”, disse Garrett Marquis, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional.
“Seus capangas impediram a entrada de toneladas de alimentos e remédios, enquanto milhares de voluntários corajosos se esforçaram para proteger e levar a ajuda até as famílias venezuelanas.”
O carregamento de ajuda humanitária criou um confronto na fronteira da Colômbia e Venezuela que difere de qualquer coisa vista há anos.
Em 23 de fevereiro a oposição venezuelana planejou furar um bloqueio militar de Maduro, esperando que as forças de segurança do presidente rompessem com ele em lugar de impedir a entrada da ajuda muito necessária. Ela argumentou que ocorreriam deserções em massa entre os militares e que isso acabaria levando à queda do governo.
Em vez disso, as forças de segurança de Maduro, ao lado de gangues alinhadas com o governo, atacaram manifestantes, que vieram armados com pedras e coquetéis molotov. No meio da confusão, um dos caminhões de ajuda pegou fogo, desencadeando uma acirrada troca de acusações sobre quem seria responsável.
O governo de Maduro também fez acusações não substanciadas, a começar pela insistência em que não faltam alimentos na Venezuela.
Ele também afirmou que o carregamento de ajuda humanitária continha alimentos vencidos ou armas americanas.
Mas uma alegação que parece ser fundamentada pelas imagens em vídeo é que o incêndio foi ateado por manifestantes.
“Eles tentaram alegar que o povo da Venezuela teria queimado um caminhão que transportava comida podre, mas não, não, não, foram eles mesmos, foram os criminosos de Iván Duque”, disse Maduro a uma multidão, aludindo ao presidente da Colômbia.
No dia do comboio, o governo colombiano rapidamente tornou-se o principal proponente da teoria de que Maduro teria estado por trás do incêndio. A vice-presidente Marta Lucía Ramírez postou uma foto do que disse ser “um dos caminhões incinerados por gangues por ordem de Maduro”.
Após a destruição do caminhão, o governo colombiano enviou imagens feitas por câmeras de vigilância da ponte a autoridades americanas e jornalistas colombianos.
As imagens foram editadas para mostrar círculos em volta das forças de segurança venezuelanas atirando latas de gás lacrimogêneo, que explodem sob impacto, em direção ao comboio humanitário. Imagens subsequentes mostram o caminhão explodindo em fumaça, deixando entender que as autoridades venezuelanas teriam sido responsáveis.
Mas o período de 13 minutos que antecedeu o começo do incêndio foi cortado das imagens enviadas pelo governo colombiano. Funcionários do gabinete de Iván Duque só divulgaram o vídeo completo após reiterados pedidos do NYT.
Os manifestantes que atiraram coquetéis molotov da ponte insistiram que o incêndio foi ateado pelas forças de Maduro, não por suas bombas caseiras.
Junior José Quevedo, 23 anos, disse que chegou às 7h daquele dia e tentou conversar com policiais para persuadi-los a deixar os caminhões passarem. “Mas então chegou outro grupo armado de ‘colectivos’”, ele disse, aludindo a gangues alinhadas com o governo.
Adalberto Rondón, outro manifestante que jogou coquetéis molotov na ponte naquele dia, disse que foram homens da Guarda Nacional que atearam o incêndio.
O mesmo relato foi reiterado por autoridades americanas nesse dia.
“Cada um dos caminhões queimados por Maduro levava 20 toneladas de comida e remédios”, escreveu no Twitter o senador republicano Marco Rubio, da Flórida, reiterando uma acusação postada por uma rede noticiosa colombiana presente no local.
“Trata-se de um crime. Se a lei internacional significa alguma coisa, Maduro precisa pagar um preço alto por isso.”
Contatado pelo NYT no sábado sobre as imagens, um porta-voz de Rubio não falou da questão de quem ateou fogo aos caminhões, dizendo em comunicado que “Maduro carrega a responsabilidade total pela destruição da ajuda humanitária”.
Juan Guaidó, o líder da oposição venezuelana, declara com firmeza que a ajuda continha medicamentos e que foi incendiada por Maduro.
Contatado pelo NYT na quinta-feira sobre uma possível informação contraditória sobre o que continha a carga do caminhão, Edward Rodriguez, um porta-voz da Guaidó, disse não dispor da “informação exata” e encaminhou as perguntas a Gaby Arellano, parlamentar encarregada da distribuição da ajuda.
Não foi possível entrar em contato com Arellano nesta última semana. Mas, quando foi entrevistada pelo NYT na ponte pouco depois de o caminhão pegar fogo, em 23 de fevereiro, a parlamentar disse que o caminhão não trazia remédios.
“Havia máscaras de uso médico, seringas, luvas, os materiais usados em salas de cirurgia”, ela disse.