Volta da França ama mostrar garotas do pódio e é criticada por isso
A cerimônia diária na qual os vencedores das diversas provas da Volta de França vestem suas camisetas de liderança é rigidamente coreografada. E uma parte crucial do ritual é uma tradição do ciclismo cuja época já passou, na opinião de muita gente.
A cada dia, duplas de mulheres jovens, usando sapatos de salto alto e vestidos de noite, ou saias acima dos joelhos, ajudam os vencedores a vestirem versões de suas camisetas especiais para o pódio, lhes entregam presentes e, em alguns casos, encerram a cerimônia com beijos castos nos atletas.
A organizadora da competição, Amaury Sport Organization (ASO), define as jovens como “recepcionistas da Volta da França”. O nome pelo qual elas são mais conhecidas é “garotas do pódio”.
Como em muitas das funções na Volta da França, suas jornadas de trabalho são longas, os dias costumam ser movimentados, e o glamour é menor do que as pessoas imaginam. Para muitas mulheres, especialmente as envolvidas no ciclismo, a rotina parece antiquada, e até mesmo ofensiva, no século 21.
“A ASO tem problemas com as mulheres, francamente”, disse Emma Pooley, ciclista profissional britânica que se retirou das competições.
“Existe um papel para as pessoas do pódio, que dão glamour à apresentação dos prêmios. E ajuda que as pessoas que estão lá saibam o que estão fazendo ao distribui-los. O que não é entendo é o que sexo ou sexualidade tem a ver com isso”.
Em um momento no qual o tratamento dado às mulheres em suas funções profissionais vem sendo examinado, e contestado amplamente, a Volta da França e o Giro d’Italia, a competição italiana equivalente, estão cada vez mais isolados.
A Vuelta a España, a terceira das grandes tours do ciclismo, também controlada pela ASO, agora tem homens e mulheres entregando prêmios em seus pódios. O Tour of California adotou a mesma prática este ano.
A Down Under Tour da Austrália trocou as mulheres que apresentavam prêmios nos pódios por jovens ciclistas, depois que o governo do estado da Austrália do Sul retirou as verbas que fornecia para a cerimônia, dois anos atrás.
A União Internacional do Ciclismo, a organização internacional que comanda o esporte, decidiu no mês passado adotar o modelo da Vuelta a España para as premiações dos diversos campeonatos mundiais do esporte.
A Volta da França dificilmente está sozinho, em um mundo do esporte que ainda se apega às suas filosofias tradicionais quanto a questões de gênero.
A NFL, a principal liga de futebol americano dos Estados Unidos, iniciará sua nova temporada em setembro ainda com a presença de cheerleaders usando trajes sumários, apesar do escrutínio renovado sobre o papel das animadoras de torcida e de acusações de maus tratos a elas.
Em Wimbledon, os árbitros principais se referiam a Serena Williams, que se casou recentemente, como Sra. Williams, enquanto os homens casados são mencionados apenas por seus sobrenomes.
Fabrice Tiano, porta-voz da Volta da França, disse que o diretor da competição, Christian Prudhomme, não voltará a discutir a questão das recepcionistas.
Tiano disse que as reportagens publicadas anteriormente este ano sobre uma reavaliação da Volta da França quanto às suas práticas de pódio não procediam. Ele explicou que o sistema em vigor tinha uma lógica própria de igualdade, e que ela seria mantida.
“Nas provas femininas, temos homens no pódio para premiação; nas provas masculinas temos mulheres no pódio”, ele disse.
O dia de trabalho do pessoal de pódio em geral começa em uma área VIP na qual os patrocinadores do Tour recebem convidados empresariais, bem antes do início da etapa.
Os hóspedes são levados a uma visita à rota da etapa, em carros e vans dirigidos por astros aposentados do ciclismo; os mais influentes fazem a visita de helicóptero; as recepcionistas funcionam como manobristas, dirigindo os carros dos convidados até a linha de chegada.
Quando a cerimônia de premiação acaba, elas rapidamente trocam rapidamente de roupa, para apanhar os carros dos convidados.
Por muitos anos, as mulheres que trabalhavam no pódio eram recrutadas nas cidades em que cada etapa é encerrada. Hoje, os patrocinadores empresariais de cada prêmio selecionam e contratam as mulheres por meio de agências de modelos.
Breves biografias das modelos contratadas para a cerimônia da camiseta amarela, publicadas dois anos atrás pelo banco Crédit Lyonnais, que patrocina o prêmio, indicavam que a maioria delas eram estudantes, algumas de pós-graduação. A maioria das modelos falava mais de um idioma.
Em tese, as mulheres não estão autorizadas a manter qualquer contato com os ciclistas fora do pódio, mas romances acontecem.
Em 2003, Melanie Simmoneau foi demitida depois de receber um bilhete do americano George Hincapie, um dos colegas mais próximos de Lance Armstrong. Mas tudo acabou bem: eles se casaram.
Houve casos de comportamento inapropriado envolvendo as recepcionistas. Cinco anos atrás, Peter Sagan beliscou as nádegas de Maja Leve, que estava trabalhando como recepcionista do Tour de Flandres, na Bélgica, quando ela estava beijando o vencedor para congratulá-lo.
Sagan, que venceu cinco etapas na Volta da França deste ano e detém a camiseta de liderança nas provas de velocidade, pediu desculpas mas não sofreu punição.
Independentemente do tratamento dado às recepcionistas, Pooley disse que não conseguia compreender por que as funções em questão não podem ser desempenhadas por homens e mulheres indiferentemente, e porque trajes profissionais não podem ser usados para substituir os vestidos de noite, cujas cores combinam com as das camisetas dos vencedores, nas cerimônias de premiação.
Ela disse que a cerimônia de premiação reflete a visão da ASO sobre as mulheres. A organização se recusa a organizar uma competição plena para mulheres. No momento, realiza apenas um evento de um dia de duração, antes das provas masculinas da Volta da França.
“Você consegue imaginar uma maratona de Nova York em que só mulheres entregam prêmios aos homens?”, disse Pooley. “E que a prova feminina fosse realizada em outro lugar e com percurso de apenas cinco quilômetros?”
Grandes patrocinadores mundiais, como a Coca-Cola, abandonaram a Volta da França, em geral. A safra atual de patrocinadores, como o Crédit Lyonnais, opera principalmente na França.
O Crédit Lyonnais informou em um breve email que apoiava o formato da premiação da Volta da França e disse que as mulheres que trabalham na competição tem diversos deveres.
A montadora de automóveis tcheca Skoda não respondeu a pedidos de comentários. Ela é subsidiária da Volkswagen e patrocina a entrega da camiseta verde, que Sagan usa no momento (e que ele rasgou em uma queda em uma etapa de montanha na quarta-feira).
Pooley, que hoje trabalha como comentarista para a Global Cycling Network, um serviço de vídeos online, disse não acreditar que a Volta da França venha a utilizar homens e mulheres em suas cerimônias de pódio, ou que venha a acabar com os beijos, pelo futuro previsível.
“Eles têm a maior competição de ciclismo do mundo, e ela funciona bem”, disse Pooley. “Por que quereriam mudar alguma coisa?”