Volta triunfante de Guaidó contrasta com improvisos durante turnê sul-americana
"Só tinha a roupa do corpo. A camisa com que subi no palco em Cúcuta foi emprestada. Depois, compramos ternos e roupas para mim e para minha mulher na Colômbia", contou Juan Guaidó à Folha, no dia seguinte à sua chegada ao país vizinho.
Proibido pela Justiça venezuelana de deixar o país, o oposicionista levou mais de 40 horas para cruzar ilegalmente a fronteira e chegar à Colômbia para liderar a tentativa de entrada de ajuda humanitária, no dia 23 de fevereiro.
Guaidó disse que a travessia foi feita com "a ajuda de amigos do Exército". Mesmo assim, a jornada foi perigosa, pois teve que cruzar pelas temidas "trochas", trilhas no meio do mato pelas quais passam todos os dias contrabandistas e narcotraficantes, e por onde trafegam integrantes da guerrilha ELN (Exército de Libertação Nacional) e paramilitares colombianos.
Não pode haver contraste maior a isso do que a chegada de Guaidó, na segunda-feira (4), sorridente e com passaporte em mãos, ao aeroporto internacional Simón Bolívar, em Maiquetía.
Guaidó desembarcou num vôo comercial no começo da tarde e, em seguida, foi a uma manifestação de rua em seu apoio.
Nessa aventura de dez dias fora do país, quase nada foi planejado antecipadamente.
As decisões foram tomadas dia após dia por um grupo pequeno de colaboradores, deputados e aliados, alguns juntos a Guaidó, outros desde Caracas, analisando os cenários, as reações do ditador Nicolás Maduro a seus atos e os convites feitos por países aliados para visitá-los enquanto articulava o retorno ao país.
Segundo a Folha apurou, a turnê internacional por países da região era vislumbrada como um plano B, caso a tentativa de entrada de ajuda humanitária no último dia 23 falhasse. De fato, falhou.
Embora o plano B estivesse contemplado, os passos dessa estratégia não estavam planejados. De acordo com um colaborador de Guaidó, o périplo após o fracasso em Cúcuta se apoiou na ajuda dos países aliados.
O principal deles foi a Colômbia, onde Guaidó passou mais dias e onde esteve em contato com chanceleres e representantes da região durante a reunião do Grupo de Lima.
Guaidó então rumou ao Brasil, ao Paraguai, à Argentina e ao Equador. Chegou-se a cogitar uma ida a Europa e mesmo aos EUA, mas, em Caracas, seus aliados temiam que a ausência por muitos dias pudesse fazer com que sua popularidade caísse.
Viajou em aviões emprestados por governos, comprou mais roupas pelo caminho e concedeu diversas entrevistas, articuladas por seu chefe de imprensa, que não viajou com ele, trabalhando desde Caracas.
Sem salário, como muitos da Assembleia Nacional, órgão considerado "em desacato" pelo chavismo, Guaidó teve de usar fundos pessoais para algumas compras e refeições, mas a maioria dos gastos foi coberta pelos países ou por colaboradores de fora, cujas identidades são mantidas em segredo.
Assim como Guaidó, seus colaboradores não recebem salário, são voluntários e simpatizantes de sua causa.
Se o plano A não funcionou, o plano B deu certo, inclusive ao não deixar que nenhuma informação sobre seu paradeiro e seu trajeto a cada dia vazasse.
A visita a Buenos Aires, por exemplo, foi anunciada quando Guaidó estava a ponto de decolar de Assunção, no Paraguai. Um par de horas depois, o líder opositor venezuelano estava na residência de Olivos apertando a mão do presidente Mauricio Macri.
A chegada a Caracas, de avião, deu ares de triunfo à operação. Na capital venezuelana, Guaidó conta com um grupo de fiéis amigos deputados e políticos que fizeram as discretas mediações e contatos para permitir seu retorno pelo aeroporto de Maiquetía.
São, principalmente, políticos conhecidos como a "geração de 2007", que despontou depois do desgaste de figuras como Henrique Capriles e María Corina Machado. São eles Stalin González, Miguel Pizarro e Juan Andrés Mejía, o presidente da comissão parlamentar que comandou as operações de movimentos de Guaidó desde Caracas.
Nos bastidores, estão também Leopoldo López, preso político do regime e líder do partido a que Guaidó pertence, e sua mulher, Lilian Tintori —o casal tem uma grande agenda de contatos no exterior.
Ainda não está claro se sua volta foi uma concessão de Maduro. Nesse caso, a estratégia chavista pode se apoiar no medo de provocar uma intervenção militar norte-americana ou na estratégia usada com outros opositores no passado —a de deixar que as pessoas se cansem dos protestos, e o entusiasmo acabe se apagando.
Há, porém, a possibilidade de que a entrada tranquila por Maiquetía tenha sido negociada. O fato é que o retorno passou pelo conhecimento do chavismo.
Guaidó havia saído do país de forma duplamente ilegal, primeiro porque está proibido pelo Tribunal Superior de Justiça, depois por fazê-lo por caminhos ilegais.
Por muito menos estão presos outros líderes e centenas de políticos. Sem carimbo de saída no passaporte, Guaidó recebeu o carimbo de entrada sem problemas nem perguntas.
Também não pegou fila. Passou pelo posto destinado a autoridades políticas e diplomáticas. Pelo seu rosto sorridente e confiante o tempo todo, desde o momento em que discursou para os tripulantes do voo que o levou de volta à Venezuela até a manifestação em Caracas, parecia que já sabia que o caminho estaria livre para sua entrada em Maiquetía.