À espera da final, organizadas de Boca e River dominam arredores de estádios
Separados por 14 quilômetros de distância, La Bombonera e Monumental de Nuñez, estádios de Boca Juniors e River Plate, os finalistas da Libertadores deste ano, vivem o futebol de maneiras distintas.
No bairro pobre de La Boca, moradores se sentam nas calçadas ou na frente das casas coloridas para observar o movimento de torcedores.
Em Nuñez (embora se diga que o campo está em Belgrano), os vizinhos do maior estádio do país se trancam em casa. Vários colocam faixas nas sacadas em protesto contra vandalismos e tumultos que acontecem em dias de jogo.
“Paz para os moradores de Nuñez. Estamos cansados!”, diz uma delas, vista pela Folha horas antes da semifinal contra o Grêmio, na terça (23).
O que há de idêntico, além da paixão pelo futebol, é ação dos “barras bravas”.
La Doce e Los Borrachos del Tablón, as organizadas de Boca Juniors e River Plate, se odeiam, mas agem de formas iguais nas redondezas de seus estádios. É negócio tão lucrativo que parte do núcleo que comanda as duas barras nem é torcedora de Boca ou River.
La Doce está infiltrada por gente do Almirante Brown, da segunda divisão. Los Borrachos del Tablón conta com torcedores do Sportivo Italiano (da quarta divisão) e Chacarita Juniors (da segunda).
Antes das semifinais contra Grêmio e Palmeiras a Folha acompanhou a ação das duas torcidas. Elas vendem de material pirata do clube e camisas da própria organizada, negociam ingressos no mercado paralelo e repartem o dinheiro obtido por guardadores de carros e ambulantes.
Todas as ruas com acessos aos estádios tinham mais de um bloqueio cada, tornando difícil a passagem para quem não tinha ingresso ou carteira de sócio do clube. Tanto Boca quanto River têm mais associados do que lugares no estádio, o que cria um lucrativo mercado negro.
Em jogos importantes, as duas organizadas podem ficar com até 2.000 ingressos, cedidos de forma extra-oficial por dirigentes. Uma parte dessas entradas é distribuída entre amigos dos organizados, mas outra vai para revenda. Há também os sócios que não pretendem ir ao jogo e cedem suas carteirinhas para os “barras bravas”.
No livro “Asalto al Mundial” (Assalto ao Mundial, sem publicação em português), o jornalista Gustavo Grabia conta que em nome do lucro, barras preferiram vender os próprios ingressos cedidos pela AFA (Associação do Futebol Argentino) para jogos da seleção na Copa da Alemanha, em 2006, do que entrar nos estádios.
Uma entrada para a semifinal contra o Palmeiras, nas cercanias de La Bombonera, era oferecida por 13.000 pesos (cerca de R$ 1.500). O salário mínimo na Argentina é 9.500 pesos (cerca de R$ 1.100).
Não há estimativa de quanto as organizadas lucrarão na final da Libertadores.
Em ruas que dão acesso ao Monumental, como Figueroa Alcorta, Guillermo Udaondo e Lidoro Quinteros, pessoas com dois celulares e rádio pareciam controlar outras, que ficavam posicionadas nas esquinas, esperando serem procuradas por torcedores sem ingresso. Não há pechincha. O preço é aquele e acabou.
Se há acordo, o intermediário sai em disparada para conversar com o superior e avisar a presença de um comprador.
O mesmo acontece nas imediações de La Bombonera, em ruas como Brandsen, Pinzón, Palos e Irala.
Nada acontece nessas regiões sem que as organizadas fiquem sabendo ou tenham participação. No Monumental, mesmo em avenidas mais distantes como a Libertador, guardadores de carros agem sob a proteção dos barras, que levam uma porcentagem.
O mesmo vale para os ambulantes que oferecem comidas, bebidas ou camisas falsificadas do Boca Juniors. Um dos guardadores de carro, ao coletar 200 pesos (R$ 23) de um motorista, disse que ficaria com 20 pesos (R$ 2,30). O resto iria para os “chefes”.
Uma das lojas mais famosas que vendem material do Boca em frente a La Bombonera foi aberta nos anos 1970 por José Barrita, el abuelo (o avô), o primeiro líder da Doce que ficou conhecido do público.
Há também o culto aos “barras bravas”. Camisas, gorros e bandeiras das torcidas são procuradas por gente comum, a mesma que entoa cantos dentro dos estádios que são iniciados pelas “populares” —setores com ingresso mais barato, onde ficam os barras.
Foi Barrita quem inaugurou a lucrativa modalidade de poder das organizadas. O presidente do Boca Juniors, Alberto José Armando, em uma estratégia peronista de governar, entregou o comando das populares para La Doce nos anos 1970. Lavou as mãos. Eles eram donos do lugar.
Em troca, o cartola queria lealdade canina da barra, que logo estendeu o domínio para as redondezas do estádio.
No início deste século, a direção do River Plate chegou a apoiar a ascensão de nova facção ao poder em Los Borrachos del Tablón porque eles prometeram “limpar” as populares da venda de drogas e roubos entre torcedores.
Embora ambas vivam momentos de calma, há disputas internas pelo poder. Nos últimos 20 anos, elas já causaram assassinatos, prisões e foram seguidas pela mídia do país. Em épocas de eleições, os barras são procurados por partidos em busca de apoio.
Ex-líder de La Doce e ainda uma das referências da organizada, Rafael Di Zeo se vangloria de ter agenda telefônica com os nomes mais poderosos da Argentina.
Os ganhos “externos” em dias de jogos são percebidos sem dificuldade, mas há outros que são mais difíceis de testemunhar, como rifas para viagens, aluguel de ônibus e confecções de bandeiras.
Existe também a venda de camisas oficiais doadas aos barras pelos próprios jogadores, que também são pressionados a dar dinheiro vivo.
Atual técnico do River, Marcelo Gallardo, por exemplo, pagou seis passagens aéreas para capos da Borrachos del Tablón irem à Alemanha torcer pela seleção argentina na Copa do Mundo de 2006.