É hora de retornar à investigação das grandes questões humanas
Nietzsche havia tentado conquistar o coração de Lou Salomé, sem sucesso. Depois, enquanto vagava solitário entre a Itália e os Alpes Suíços, recebe uma carta do velho amigo Erwin Rohde com uma foto de seu filho recém-nascido.
A reação de Nietzsche é um exercício de autopiedade. “Oh, amigo, que vida reclusa e sem sentido a minha. Tão só, tão sem filhos.” Não seria a primeira nem a última vez que ele reclamaria de sua vida solitária.
A lamentação, porém, é apenas parcialmente verdadeira. Nietzsche parece apenas dar alguma vasão à imagem do homem feliz, confortável, rodeado de filhos, pequenos prazeres e alguma estabilidade. O filósofo era, no fim das contas, um animal de outro tipo.
Seu propósito um tanto dramático era buscar uma espécie de sentido para a existência humana em um mundo em que os velhos valores haviam derretido. Um mundo sem deus, na sua imagem mais conhecida, no qual não nos resta outra alternativa senão andar por conta própria.
A partir daí vem seu fascínio pela ideia do “além-do-homem”, seu deboche talvez injusto ao “último homem”, ao pequeno hedonista, ao homem comum. Daí seu elogio de Schopenhauer, espécie de Napoleão que se pôs a pensar e a perguntar, em vez de ir à guerra. Daí seu elogio da vida que se vive “perigosamente”, assumindo um tipo de risco que ele mesmo assumira quando rompeu com a sua formação protestante, com a vida acadêmica, com o fascínio de Wagner.
É um pouco sobre estas coisas que o Fronteiras do Pensamento 2019 irá tratar. Infelizmente, Nietzsche não está mais por aqui para ser convidado, mas não faltarão tipos extraordinários de nosso tempo, tendo cada um a seu modo caminhado perigosamente para este lugar desconhecido que é o além-do-homem.
É assim com Luc Ferry, com sua definição incômoda da filosofia como caminho possível para uma “salvação sem deus”. A imagem do corvo, do poema de Edgar Alan Poe, a cada instante dizendo “nunca mais, nunca mais”, e a nos lembrar do efêmero, da fragilidade da vida, do sem sentido do medo que nos paralisa e nos impede de ir adiante.
É assim com Roger Scruton e seu elogio da beleza como sentido último da arte. A ideia de que “podemos lidar com a tristeza da vida, em parte, porque podemos representá-la, e deste modo lhe oferecer um sentido”. Um exercício que permite à vida ir para além da mera utilidade. De novo: além do que é necessário, do usual, da vida feita a baixo risco.
Não teremos Nietzsche, mas encontraremos Paul Auster. O criador de Nathan Glass e seus “Desvarios no Brooklin”. Auster e seus personagens incomodamente parecidos com todos nós. Urbanos, por vezes solitários, por vezes obrigados a reconstruir tudo e cultivar afetos difíceis. Auster como o escritor do anti-herói. O outsider do sonho americano. Ele mesmo, quem sabe, caminhando no deserto.
Herói mesmo é Denis Mukwege, o Nobel da Paz, o médico que tinha diante de si uma vida confortável, na Europa, mas que volta ao Congo, em meio à guerra, para refundar seu hospital e dedicar a vida a devolver a dignidade a mulheres vítimas de mutilação e violência sexual. Mukwege é um tipo que decidiu viver no centro do furacão. Será interessante saber de suas razões.
O mesmo vale para Werner Herzog, o cineasta, o escritor, o documentarista, o provocador (agora de volta à selva brasileira para retratar a aventura esquecida da Fordlândia), para Graça Machel ou para a cientista e escritora Janna Levin.
Cada um, a seu modo, responde à provocação de Contardo Calligaris, que certa vez disse não desejar simplesmente uma vida feliz, mas uma vida interessante. Ninguém sabe ao certo, imagino, o que é uma vida interessante, mas a questão parece mais atual do que nunca.
Somos filhos de um tempo em que se vive mais, as oportunidades se multiplicam e com elas a angústia da escolha. Daí a pergunta, feita no plural, sobre os sentidos da vida. Pergunta sem chance de uma grande e definitiva resposta, aí residindo, sabe-se lá, seu delicado encanto.