A quatro anos da sua Copa, Qatar gasta fortuna e patina para ter um time
O grito de guerra começou na metade do primeiro tempo, em um canto do estádio Kehrweg, em Eupen, na Bélgica, ocupado por algumas dezenas de pré-adolescentes, todos usando casacos acolchoados pretos sob a neve que caía.
Os casacos identificavam as crianças como integrantes das categorias de base do clube local, o K.A.S. Eupen. O escudo do time enfeitava o peito de cada casaco. Nas costas, um segundo distintivo, um segundo nome: Aspire, a organização que é dona do Eupen e opera o time. Há cinco anos, o Eupen vem servindo como escola de aperfeiçoamento para os alunos da Aspire Academy, um projeto dispendioso bancado pelo Qatar com o objetivo de transformar o pequeno emirado do Golfo Pérsico em uma força de elite no esporte mundial.
As crianças estavam claramente ansiosas para demonstrar sua gratidão, segunda-feira (19), quando a seleção nacional do Qatar fez uma de suas raras visitas à Europa para um amistoso contra a Islândia. Ari Skulason, o capitão da seleção islandesa, estava posicionando a bola para bater uma falta, e aquele canto do estádio irrompeu em um grito de guerra para estimular o adversário. As vozes agudas e empolgadas das crianças tomaram o ar impiedosamente frio da noite, e a meninada belga gritava "Qatar, Qatar".
Nos 10 últimos anos, o Qatar gastou quantias quase incalculáveis de dinheiro para tentar se transformar em grande nome no mundo do futebol, e com isso conquistar corações e mentes e expandir sua influência em todo o mundo. Pelo menos aqui, nesse estádio ordeiro e compacto em uma cidade ordeira e compacta a alguns quilômetros da fronteira entre a Bélgica e a Alemanha, o projeto parecia estar funcionando.
Eupen responde apenas por apenas uma pequena fatia do investimento multibilionário do Qatar em futebol. Muito mais dinheiro foi investido na Aspire, com sua equipe de especialistas internacionais e instalações modernas em Doha e no Senegal.
E os gastos com o projeto ainda assim empalidecem se comparados aos acordos de patrocínio do Qatar com o Barcelona, ao estabelecimento e expansão da rede de TV e rádio esportiva beIN Sports, ou ao cerca de US$ 1 bilhão gasto na compra e subsequente transformação do Paris St.-Germain em um dos clubes mais poderosos e mais glamourosos da Europa.
E, além disso, claro, há a Copa do Mundo de 2022. Nesta quarta (21), faltam exatamente quatro anos para que o maior espetáculo da Terra chegue ao Qatar, um país de apenas 2,6 milhões de habitantes que jamais se classificou para o torneio por mérito, um lugar que teve de construir sua infraestrutura futebolística essencialmente do zero. As estimativas apontam que o custo total dos estádios, sistemas de transporte, hotéis e pelo menos uma cidade inteiramente nova atinja os US$ 200 bilhões.
Esse é o preço. Mas não é todo o custo. Já faz oito anos que o então presidente da Fifa Sepp Blatter confirmou, diante de uma plateia chocada em um salão de conferências de Zurique, que o Qatar havia derrotado os Estados Unidos, Coreia do Sul, Japão e Austrália e conquistado o direito de organizar a Copa do Mundo. O que aconteceu de lá para cá certamente deve levado tanto a Fifa quanto o Qatar a questionar se tudo isso realmente valeu a pena.
Por muitos anos, fervilharam acusações de corrupção, suborno e fraude no processo seletivo. Poucos dos membros do Comitê Executivo da Fifa que participaram da votação continuam na organização. Muitos deles foram indiciados ou presos. O escândalo terminou por derrubar Blatter e todo o seu regime. A Fifa faz o que pode para afirmar que mudou, mas seus argumentos não convencem. A mácula persiste. E a verdade é que talvez nunca seja removida.
E a atenção dedicada ao Qatar não foi positiva. Se sediar a Copa do Mundo era imaginado como maneira de exibir a força do país ao mundo, não foi isso que aconteceu. Organizações de defesa dos direitos humanos continuam a reportar graves abusos contra os trabalhadores imigrantes no Qatar, em muitos casos empregados em projetos relacionados com a Copa do Mundo.
Não que isso faça da Fifa ou do Qatar uma vítima. As vítimas são os trabalhadores mesmos, que recebem salários que mal lhes permitem sobreviver e que continuam a morrer no calor escaldante do deserto –e são vistos apenas como danos colaterais em um jogo de poder, como parte do custo da obsessão do Qatar com o futebol.
Ou, mais exatamente, de sua obsessão com a ferramenta em que o emirado planeja transformar o futebol. Parece claro, já há muito tempo, que aquilo que atrai o Qatar é o teatro da Copa do Mundo –a exibição de riqueza, o consumo conspícuo. O esporte mesmo nunca passou de um apêndice, e o que acontece em campo é menos importante do que a beleza dos estádios.
Isso não equivale a dizer que não houve planejamento a cerca da seleção –o projeto Aspire trabalha em estreita coordenação com a federação de futebol qatariana– ou que não exista plano para garantir que a equipe do país seja no mínimo competitiva. A verdade é que um projeto gradual e discreto de desenvolvimento do futebol não se enquadra ao brilho e ao exibicionismo que o Qatar tenta projetar em outras áreas, seja nas instalações para a copa em Doha, seja em Paris.
A partida da segunda-feira contra a Islândia, em Eupen, diante de apenas 2.830 torcedores –muitos dos quais usando os casacos da Aspire–, é um bom exemplo. O Qatar escolhe seus adversários cuidadosamente, e evita a tentação de jogar contra os gigantes do futebol. Sofrer derrotas acachapantes para o Brasil ou a França não traria benefício educativo para seus jogadores, todos os quais jogam em times da Qatari Stars League.
Em lugar disso, o espanhol Félix Sánchez Bas, treinador da seleção qatariana, prefere enfrentar adversários como a Islândia ou a Suíça. São equipes que podem ensinar ao time "como é jogar em alto nível, e com que velocidade qualquer erro pode ser punido", disse Sánchez Bas. Seleções que "estiveram na Copa do Mundo, que estão entre as melhores do mundo ou as melhores da Europa", de acordo com o ala Akram Afif, um dos mais brilhantes talentos da equipe do Qatar.
A ideia é que os qatarianos aprendam gradual e cuidadosamente, e sem pressão intensa, o que eles terão de fazer para superar as expectativas do mundo (que são bem baixas) quanto ao seu desempenho em 2022. "A Copa do Mundo é o objetivo de longo prazo", disse Sánchez Bas. "Sabemos que está lá".
Ele prefere se concentrar no curto prazo: a Copa da Ásia, daqui a alguns meses, e depois a Copa América do ano que vem, no Brasil, em que o Qatar jogará como seleção convidada. "Tudo isso servirá como experiência para 2022", ele disse.
Os resultados foram encorajadores, nos últimos dias: uma vitória contra a Suíça seguida por um empate elogiável contra uma equipe islandesa enfraquecida. "Eles melhoraram muito", disse Erik Hamren, o treinador sueco da Islândia. "E ainda têm quatro anos, e muitos recursos, para conseguir novos avanços".
Quatro anos é muito tempo, obviamente: são dezenas de amistosos, cada qual um pouquinho mais difícil que o precedente. São incontáveis sessões de treinamento. "Temos todo o dia para trabalhar, 24 horas por dia", disse Afif.
Mas não é tanto tempo assim. O Qatar já completou dois terços do seu projeto de Copa do Mundo. É tentador imaginar que é por isso que tanto esforço foi dedicado aos estádios, já que essa é uma área que o país pode claramente controlar. Construir um time não é algo que se possa fazer com prazo contado, não importa quanto dinheiro esteja disponível.
Em um país onde o pool de jogadores é tão pequeno, como disse Afif, é provável que a equipe que entrou em campo contra a Islândia tenha diversos integrantes na Copa. "É difícil encontrar jogadores de alto nível", ele disse. "Essa é a diferença entre o Qatar e lugares como a Espanha".
Da mesma forma que seu treinador, Afif não vê a Copa do Mundo como preocupação imediata. Não há pressão sobre os jogadores por 2022, ele disse, e nenhum senso de urgência ou pânico. Mas o relógio está correndo. Dentro de quatro anos, todo o dinheiro que o Qatar gastou, todos os jogadores que comprou para o Paris St.-Germain, todos os corações e mentes que o emirado tentou conquistar, serão esquecidos. Aos olhos do planeta, o sucesso ou fracasso de sua grandiosa ambição dependerá de 23 jogadores e um treinador. Dentro de quatro anos, o jogo vai começar.