Antropólogo e diplomata, Gustavo Pacheco estreia na ficção com 'Alguns Humanos'
Em 1989, o adolescente Gustavo conheceu um escritor em "carne e osso". Sérgio Sant'Anna, que acabara de publicar o livro "A Senhorita Simpson", participou de um encontro com estudantes que gostavam de ler.
Passados quase 30 anos, os dois vão dividir, no próximo dia 26, uma mesa na Flip.
"Desde aquela conversa, li praticamente tudo o que o Sérgio escreveu", conta Gustavo Pacheco, hoje aos 46, diplomata e antropólogo que acaba de lançar a coletânea de contos "Alguns Humanos".
"Uma das primeiras coisas que fiz foi ligar para ele, pedir o endereço e mandar um exemplar. Ele leu, me escreveu e nos tornamos amigos."
Sant'Anna ficou encantado: "Linguagem apurada, sofisticação e senso de humor. É difícil acreditar que se trata de um livro de estreia. Gustavo Pacheco já é um dos melhores contistas brasileiros".
Pacheco não acredita na separação estanque entre conto e romance. "O livro é feito de histórias que podem ser lidas separadamente, mas quem as ler na ordem em que as coloquei perceberá, espero, um sentido de unidade que talvez não esteja tão longe do que se espera de um romance", diz.
A obra teve um período longo de gestação: sete anos.
"No início eu escrevia sem me preocupar com a unidade. Depois fui me dando conta de que algumas obsessões teimavam em reaparecer, e que havia elos, ou ecos, entre as histórias. No final senti a necessidade de escrever mais um conto para retomar alguns temas. Foi 'Alguns Humanos', que dá título ao livro", conta.
São 11 relatos, inquietantes e insólitos, nos quais o autor se utiliza da paródia, de uma sutil metalinguagem, do jogo entre verossimilhança e verdade, da exploração da fronteira entre humano e não humano.
Em cenários internacionais cruzam-se histórias de macacos, escravos, índios botocudos, pigmeus, taxidermistas, cientistas, domésticas, um sujeito que fala com Deus .
"Em tudo o que escrevi até hoje, a imaginação esteve ancorada pesadamente na realidade. Preciso digerir quantidades enormes de informação para escrever algo que preste, ainda que só uma pequena parte desse material apareça no texto. Isso não quer dizer que haja sempre um limite claro entre a 'parte real' e a 'parte inventada' (as aspas aí são importantes), e me interessa muito explorar essa ambiguidade", diz Pacheco.
"Alguns Humanos" surgiu primeiro em Portugal, onde ele conheceu a editora Bárbara Bulhosa, da Tinta da China.
"Já tinha mostrado o livro a algumas editoras no Brasil, que demonstraram interesse, mas não fizeram nenhuma proposta concreta. Não sabia como o livro seria recebido e tinha expectativas bem baixas. Felizmente saíram várias críticas positivas."
Por aqui, a aceitação não tem sido diferente. "O que mais impressiona no livro é a maturidade da voz narrativa, o absoluto controle dos meios de expressão. Isso é importante sempre, especialmente no conto, mas se torna essencial se você vai contar histórias com pegada lúdico-humorística-filosófica, chamando Machado, Kafka e Calvino para dançar", afirma o escritor e crítico Sérgio Rodrigues.
Diplomata desde 2006, Pacheco manteve-se próximo à literatura, como responsável pelo estande nacional na Feira do Livro de Buenos Aires e mediador do programa Destinação Brasil, da Feira de Guadalajara. Na área da antropologia, realizou trabalhos de campo sobre cultos afro-brasileiros e cultura popular no Maranhão, Pernambuco e Minas.
A intimidade com a linguagem acadêmica e diplomática moldou-lhe o estilo com um elegante tom de neutralidade.
"Depois de anos lendo e escrevendo textos científicos e burocráticos em terceira pessoa, era muito natural escrever assim. Tentava fugir escrevendo na primeira pessoa, mas o resultado não agradava. Percebi que esse distanciamento podia produzir um efeito paródico ou reforçar o estranhamento com uma determinada situação."
Gustavo é músico de samba, tendo integrado o movimento que fez ressurgir a Lapa carioca no fim da década de 1990 —experiência aproveitada no conto "Ambystoma Mexicanum ou o Labirinto Invisível"— e fundou o Cordão do Boitatá, que no Carnaval carioca atrai milhares de foliões.
Organizou a edição argentina de "Aguafuertes Cariocas", de Roberto Arlt, que ele próprio traduziu para o português. Também traduziu o peruano Julio Ramón Ribeyro e o argentino Patricio Pron: "É uma atividade que tem a mesma importância que a criação literária. Para traduzir bem é preciso ler bem e, nesse processo, você sempre acaba aprendendo algo".
Sobre a mesa na Flip, o autor tem uma certeza: "Se a conversa servir para desfazer um pouco da suposta implicância de leitores e editores com o conto, será ótimo. Espero que seja o pontapé inicial das homenagens que o Sérgio merece pelos 50 anos de carreira literária, comemorados no ano que vem".