Estado contra a sociedade
É um fracasso a tal da CNH Digital anunciada com algum estardalhaço pelo governo. Como mostrou a Folha, depois de nove meses de vigência da inovação, apenas 0,4% dos motoristas carregam a carteira de motorista em seus celulares.
A reportagem relaciona vários motivos para a baixa adesão. Eles vão da ganância de alguns Detrans, que chegaram a cobrar mais de R$ 200 por um serviço cujos custos são irrisórios, até entraves burocráticos, que exigem inexplicáveis comparecimentos físicos dos condutores aos órgãos emissores do documento.
O buraco, contudo, é, a meu ver, mais embaixo. Seja por falta de imaginação, seja pelo desejo de manter o “statu quo”, as autoridades não se empenham de verdade em facilitar a vida do cidadão. Se as polícias já têm, através de seus computadores de bordo, acesso aos bancos de dados de motoristas e de veículos, a atitude sensata é mudar a lei para que ela dispense as pessoas de portar esses documentos, não criar mais versões do papelório.
E isso é menos do que a ponta do iceberg. Existe hoje tecnologia que permitiria ao poder público disponibilizar de forma gratuita (ou por taxas mínimas) uma infinidade de serviços e procedimentos burocráticos. Isso vale para obrigações fiscais, previdenciárias, registros públicos e trâmites jurídicos.
É ridículo, por exemplo, obrigar as partes a contratarem advogados para realizar inventários extrajudiciais e divórcios consensuais, que poderiam simplesmente ser registrados num grande cartório virtual mantido pelo Estado. Aliás, a tecnologia do blockchain, que é essencialmente uma forma de reconhecer e validar consensos, pode em tese aposentar —e com muito mais segurança— vários dos procedimentos que hoje realizamos em cartórios.
É claro que alguns profissionais se veriam privados de suas reservas de mercado e sairiam perdendo, mas, quando se consideram os ganhos para o conjunto da população, não há como hesitar.