Araújo retoma e reforça censura imposta por seu sogro no Itamaraty
A demissão de um embaixador durante o Carnaval reacendeu no Itamaraty a chama da perseguição política que afligiu diplomatas em diversos momentos da história —um em particular.
Em 2001, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o Ministério de Relações Exteriores baixou uma circular conhecida como Lei da Mordaça, que impunha a necessidade de aprovação prévia de qualquer manifestação pública dos diplomatas.
Foi designado como censor o então secretário-geral, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, sogro do atual chanceler, Ernesto Araújo.
O mais conhecido alvo da circular foi o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, demitido do cargo que ocupava na época, o de diretor do Ipri (Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais).
A ruidosa demissão na segunda-feira de Carnaval, 4 de março, atingiu outro embaixador, Paulo Roberto de Almeida, que exercia a mesma função no Ipri. E envolveu, mais uma vez, ainda que de forma indireta, Seixas Corrêa.
O sogro do chanceler daria uma palestra no instituto —um braço acadêmico do Itamaraty— na sexta-feira (8).
Segundo apurou a Folha, para escapar da saia justa, Seixas Corrêa desistiu ao saber da demissão do diretor, crítico da influência do polemista Olavo de Carvalho na política externa brasileira.
“O sogro do Ernesto me puniu duas vezes pela chamada ‘Lei da Mordaça’”, afirmou Almeida em uma rede social.
“Depois da demissão do Samuel, quando ele me cumprimentou, em 2016, por ter assumido o Ipri, eu apenas respondi: ‘Grato, embaixador; só espero não ser defenestrado como um antecessor meu’. Ele sorriu e nada disse. Pois é, agora aconteceu, por uma dessas ironias do destino.”
Chanceler à época da Lei da Mordaça, Celso Lafer afirmou que os dois momentos são incomparáveis. Na sua gestão, a polêmica girava em torno da Alca (Área de Livre-Comércio das Américas), à qual a esquerda, de forma geral, e Pinheiro Guimarães, em particular, eram contrários. Lafer afirma que queria pluralismo nos debates no Ipri, daí a demissão.
“O que está ocorrendo agora é uma espécie de vocação inquisitorial, onde aparentemente o chanceler se unge da lembrança de [Tomás de] Torquemada, um grande inquisidor [do século 15]”, diz.
A gestão de Ernesto Araújo, na sua avaliação, se mostra “muito centralizadora e muito inquisitorial”. Desde que foi indicado chanceler pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), Araújo, cuja promoção a embaixador não tem um ano, gerou desconforto no corpo diplomático por medidas vistas como quebra de hierarquia.
Diplomatas gabaritados foram removidos ou postos de escanteio, e servidores menos graduados ocuparam postos de comando na atual gestão.
São citados os casos de Everton Vargas e Gisela Padovan, entre outros. O primeiro estava cotado para comandar as negociações ambientais do Itamaraty e não o foi. A segunda, meses depois de assumir a direção do Instituto Rio Branco, está de mudança para Madri para tocar o consulado.
Reservadamente, o grupo de Araújo diz que não assumiu compromisso com esses servidores, que as destinações foram decididas em comum acordo, que Almeida ofendeu o chanceler e que é natural o ministro se cercar de pessoas de sua confiança.
“Um governo que se elegeu com maioria pode evidentemente escolher pessoas que são mais afins”, disse o embaixador Rubens Ricupero, crítico de Araújo. “Mas dar à diplomacia uma cor unívoca vai eliminar muito a diversidade, que é desejável nessa área.”
Para Ricupero, que protagonizou um debate público nesta semana com Araújo, o chanceler “está revelando uma atitude de irritação e pouca tolerância à crítica”.
Procurado, o ministro não se manifestou.
“É um momento de muito mais constrangimento ideológico do que nunca”, afirmou Guilherme Casarões, pesquisador na Fundação Getúlio Vargas. “A identificação da crítica é tácita.”
Para irem para o jocosamente chamado departamento de escadas e corredores, diplomatas não precisaram verbalizar críticas a Araújo. Em alguns casos, a presunção de divergência bastou. Aconteceu antes mesmo da oficialização de Araújo como chanceler.
Hoje assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Filipe Martins, aluno de Olavo de Carvalho e próximo de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, fez campanha contra nomes aventados para liderar o Itamaraty durante a transição.
O argumento era suposta submissão ao ideário do PSDB.
“Quem quer que esteja recomendando diplomatas vinculados a FHC para chefiar o MRE tem em mente interesses estranhos aos da nação e contrários aos do presidente eleito”, escreveu, em novembro.
Alguém perguntou se era o caso do embaixador José Alfredo Graça Lima, ligado ao PSDB, desafeto do PT e então cotado para o cargo. Martins assentiu. “Continuísmo explícito, visão exclusivamente comercialista, aversão às propostas do Jair”, justificou.
Escaparam à análise daquele momento as afinidades políticas do sogro de quem viria a ser escolhido. Seixas Corrêa foi secretário-geral do Itamaraty, segundo posto mais alto da instituição, no governo Collor e no de FHC. Mantém laços com o círculo de diplomatas experimentados e afinidades com o tucanato. É elogiado pelo genro publicamente.
Ao tomar posse pela segunda vez, em 1999, discursou: “Acreditamos plenamente no projeto e teremos orgulho em contribuir para a sua consolidação e aprofundamento neste novo mandato que a sociedade brasileira outorgou pelas urnas ao presidente Fernando Henrique Cardoso”.