Brasil copia o argentino 'que se vayan todos'
O eleitor brasileiro repetiu, no primeiro turno, o grito ”que se vayan todos” emitido pelos argentinos em 2001. Aqui, na verdade, foi um ”quase todos", que o sangue não é tão quente como lá, em que o grito levou à renúncia do presidente Fernando de la Rúa e a uma sucessão de cinco presidentes em 12 dias.
A ideia de que houve um ”que se vayan todos” perpassa cada vez mais análises. Cito duas, ambas encontradas em uma coleção de artigos sobre o pleito brasileiro publicados pelo Projeto Syndicate.
De Peter Hakim, presidente emérito do Diálogo Interamericano: ”A vitória avassaladora de Bolsonaro reflete a perda de confiança dos brasileiros em seu governo, em seus líderes (de esquerda, de direita e de centro) e em suas instituições".
Reforça Monica de Bolle, diretora de Estudos Latino-Americanos da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins: o apoio a Bolsonaro ”aponta para um eleitorado que estava completamente farto do assim chamado establishment".
As causas que levaram a esse grito desesperado são óbvia e já fartamente analisadas. Para resumir, são três principais:
1 - A revelação de um esquema ciclópico de corrupção, que atingiu todos os principais partidos e uma parte significativa do empresariado. Pela primeira vez, houve prisões também dos corruptores, o que só fez aumentar a desconfiança em relação ao ”assim chamado establishment".
2 - O fato de a corrupção em grau maior ter coincidido com uma recessão devastadora, sem paralelo na história das estatísticas. Repito uma avaliação de Roberto Castello Branco, diretor do Centro de Estudos em Crescimento e Desenvolvimento Econômico da FGV, para a revista Inteligência: “O populismo do século 21 acabou por produzir a mais profunda recessão sofrida pela economia brasileira dos últimos 100 anos. A perda de produto real, de 7,2% em 2015-2016, superou a de outras grandes recessões (-3,8% em 1990/1992, -6,3% em 1981-1983 e -5,3% em 1930/1931)".
3 - A violência endêmica escapou do já precário controle das autoridades e instalou o medo em fatias consideráveis da população.
Se é fácil explicar os motivos para gritar ”que se vayan todos", mais complicado é entender porque o catalisador do grito foi um candidato que faz parte há 27 anos do establishment político. E mais: é homofóbico, racista, misógino, violento, apologista da ditadura e da tortura.
Bem antes de que a onda Bolsonaro se tornasse um tsunami, já escrevi que o simples fato de uma fatia significativa do eleitorado manifestar a intenção de nele votar já provocara formidável estrago. Repito: essa intenção representa ”reabilitar a tortura, [o que]significa descer vários degraus no patamar civilizatório de um país que não é propriamente modelo de civilização".
Agora que, segundo o Datafolha, já é a maioria absoluta (58%) os que se dispõem a eleger Bolsonaro, a hipótese sombria para explicar tal índice é esta: a maioria dos brasileiros se tornou (ou sempre foi?) machista, racista, misógina, violenta, pró-tortura.
Se é assim, nada resta a fazer a não ser tentar compor uma frente cultural, mais que política, para, primeiro, resistir à qualquer tentativa de passar da retórica odienta e discriminatória para atos idem.
Uma hipótese menos dolorosa seria a defendida em coluna nesta Folha por Gustavo Bizelli, especialista em inteligência de mercado pela Universidade da Califórnia: para ele, as últimas ondas que se somaram, na reta final, para compor o tsunami Bolsonaro, ”são majoritariamente formadas por pessoas progressistas, democráticas, que acreditam na igualdade de gênero, nas liberdades individuais, na necessidade de apoio aos mais pobres e nos direitos humanos, mesmo de pessoas que cometem delitos".
Seriam pessoas que acreditam que os instintos de Bolsonaro seriam domados pelos contrapesos dos sistemas democráticos.
Qualquer que seja a explicação completa para o fenômeno, uma frente ampla civilizatória é necessária, indispensável até. Teria que recuperar a política. Goste-se ou não dela, não se inventou até agora outra maneira de intermediação entre a sociedade e o Estado. Claro que teria que ser uma política saneada, o que, por sua vez, exige estatura dos dirigentes partidários, hoje irrecuperáveis anões.
Mesmo na improvável hipótese de que Bolsonaro acabe perdendo no segundo turno, essa revolução político-cultural continuará sendo necessária, se se pretende realmente encarar os problemas que levaram a maioria a gritar ”que se vayan todos". Surdez seria a pior resposta.