Capelão dos bombeiros ajudou a salvar tesouros durante incêndio em Notre-Dame
Não havia tempo a perder. O teto de madeira e chumbo era um inferno que se despedaçava lá em cima. As chamas agora desciam como cobras pelo maravilhoso trabalho em madeira no interior da catedral de Notre-Dame.
Em pouco tempo —minutos, talvez— o fogo começaria a ameaçar as obras de arte, artigos litúrgicos e relíquias religiosas de valor incalculável, guardadas nos labirintos e alcovas da catedral.
Os bombeiros entraram correndo, procurando o que pudessem agarrar e levar para a segurança, segundo relatos de autoridades de Paris e da mídia francesa. O capelão do departamento de bombeiros —com seus óculos refletindo as chamas cor-de-laranja— pediu para ir com eles.
Então se formou uma corrente humana, disse o vice-prefeito de Paris para turismo e esportes, Jean-François Martins, ao programa de TV americano CBS This Morning. Ela incluía autoridades parisienses, zeladores da igreja e o reverendo Jean-Marc Fournier, o capelão dos bombeiros que, horas antes, estivera preparando eventos para a Semana Santa.
"Evitamos um desastre completo", disse Maxime Cumunel, secretário-geral do Observatório do Legado Religioso da França. Mas ele disse à agência de notícias Reuters que "talvez 5% a 10% das obras de arte provavelmente foram destruídas".
"Temos de enfrentar isso", afirmou ele.
Entre os artigos que eles salvaram, segundo o ministro da Cultura francês, Franck Riester, está a coroa de espinhos que muitos fiéis acreditam ter sido usada por Jesus antes da crucificação. Também foi recuperada uma túnica usada por são Luís no século 13 —enquanto Notre-Dame estava em construção.
Os dois itens estão agora seguros na Prefeitura de Paris, ali perto, e em breve se somarão a um comboio de outros que serão levados ao museu do Louvre, segundo anunciou Riester.
Etienne Loraillère, editor da rede de televisão católica francesa KTO, disse que o capelão Fournier teve um papel vital no salvamento da coroa de espinhos e outros artigos. Fournier foi um capelão militar que serviu no Afeganistão e em 2015 confortou sobreviventes depois do ataque terrorista ao Teatro Bataclan e no norte de Paris, em que 130 pessoas foram mortas.
Felizmente, Notre-Dame estava quase vazia quando o incêndio começou.
Um alarme disparou às 18h20 de segunda-feira (15), mas funcionários de segurança da catedral não localizaram o fogo. Por garantia, entretanto, a igreja cancelou uma missa vespertina e retirou as pessoas do edifício.
Vinte e três minutos depois, as chamas eram visíveis no alto da antiga estrutura de madeira da catedral.
Em mais um golpe de sorte em meio às ruínas, as estátuas de cobre dos Doze Apóstolos e outras quatro figuras bíblicas tinham sido removidas com guindaste de Notre-Dame na semana passada, para ser limpas como parte de uma restauração geral da catedral.
Sophie Grange, porta-voz do Louvre, disse ao jornal The Washington Post que ainda não está claro quantos objetos o museu receberá ou por quanto tempo.
Outras peças imóveis que escaparam às chamas —como o órgão de 8.000 tubos construído em 1403— serão cuidadosamente avaliadas devido aos danos causados pela água.
A conta do que se perdeu, entretanto, já é alta. Ela inclui fragmentos dos restos de santa Genoveva e de são Denis, partes dos quais foram instalados em 1935 na flecha do século 19 do arquiteto Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc, que desmoronou no auge do incêndio de segunda.
Historiadores enfatizaram que a catedral em si era um emblema de um certo estilo arquitetônico e dos avanços que o acompanharam. Notre-Dame era talvez a aspiração gótica icônica, segundo Samantha Herrick, historiadora da França medieval.
"Muitas características desta igreja, embora não fossem únicas, eram novas na época", disse ela. "Os vitrais coloridos eram novos, os arcobotantes eram novos, a arquitetura gótica em si era nova. Este foi um lugar de inovação."
Por enquanto, a pergunta mais premente é o estado das obras-primas que são os vitrais da catedral —especialmente as três enormes rosáceas multicoloridas originalmente instaladas no século 13 e fortemente restauradas 600 anos depois. Apesar dessas restaurações subsequentes, os vitrais ainda contêm parte de seus elementos medievais originais.
Imagens mostraram que as rosáceas tecnicamente permaneceram intactas, mas a condição dos materiais não é garantida. "Claramente elas foram danificadas, mas até que ponto ainda não sabemos", disse Karine Boulanger, especialista em vitrais na Universidade Sorbonne, em Paris.
"Podemos ver que elas continuam no lugar, mas não sabemos exatamente em que estado se encontram, pelo menos de forma detalhada", disse ela. "Mesmo que o fogo não tenha descido por toda a catedral, o calor foi muito intenso. E deve ter impactado o vidro, assim como o material que une os painéis de vidro."
O arquiteto Jean de Chelles desenhou e construiu o transepto norte entre 1245 e 1260. De Chelles começou então a construção do transepto sul em 1258, mas ele foi concluído por Pierre de Montreuil na década de 1270.
Para especialistas, o que torna únicas as rosáceas monumentais instaladas durante essa construção é que há poucos exemplos de vitrais medievais em Paris, pelo menos fora da Sainte-Chapelle, uma joia à sombra de Notre-Dame, na Île de la Cité.
Mas é especialmente surpreendente a escala desses vitrais. A rosácea norte, por exemplo, tem mais de 12,5 metros de diâmetro, e a sul, pouco mais de 18,5 metros, levando em conta sua claraboia adicional.
Herrick comentou que a maneira especial como partes da catedral desmoronaram foi um testemunho de sua identidade medieval, particularmente diante do teto de chumbo de Notre-Dame.
"Há algo irônico nisso, pois fontes medievais se queixavam constantemente do custo de manutenção dos telhados de chumbo", disse ela. "Incêndios eram comuns naquela época, e as coisas com maior probabilidade de cair eram os telhados."
No final da segunda-feira, o presidente Emmanuel Macron pediu que Notre-Dame seja reconstruída. E quase imediatamente algumas das famílias mais ricas da França prometeram apoiar. Bernard Arnault, o homem mais rico da Europa e executivo-chefe do conglomerado de luxo LVMH, prometeu 200 milhões de euros (R$ 891 milhões); François Pinault, outro magnata do luxo, prometeu 100 milhões de euros (R$ 445 milhões).
O custo da restauração da catedral é estimado hoje em 160 milhões de euros (R$ 712 milhões).
Mas as promessas de doação por fontes privadas levantaram algumas críticas ao Estado francês, que, segundo alguns, deveria arcar mais com a preservação de uma peça tão importante da herança cultural e religiosa do país.
Nas palavras de Olivier Gabet, diretor do Museu de Artes Decorativas de Paris, "se Notre-Dame é um símbolo da França, de sua história, sua arte, também é propriedade do Estado. Nesse sentido, se podemos nos rejubilar pela generosidade dos doadores, ficaríamos orgulhosos se o Estado decidisse financiar essa restauração completamente, nestes tempos tumultuados".
Depois que as chamas foram controladas, uma cruz continuava intacta, solitária no altar cercado por paredes carbonizadas.