Com arquitetura do medo, escolas viram ambiente tóxico
Depois da tragédia de Suzano, resolvi reler “O Ateneu”, obra do escritor brasileiro Raul Pompeia. Publicado em 1888, o livro é uma pequena joia da literatura brasileira. Se você não leu, recomendo. Ele é uma janela para o passado e para o futuro da educação brasileira. Explico.
Em linhas gerais, o livro tece as memórias do narrador, Sérgio. Ele narra o período de crescimento e amadurecimento que passou no Ateneu, um dos melhores colégios do Rio de Janeiro, então a capital do país. Além da experiência estética e de empatia que só a boa literatura oferece, Pompeia constrói uma visão muito original sobre a escola e sua relação com a época.
“O Ateneu” fala dos privilégios recebidos pelos filhos da elite, das tensões dentro de uma aristocracia decadente, da ascensão meio torta de famílias de classe média, especialmente de imigrantes, e dos maneirismos e obsessões de quem comanda uma instituição de ensino – diretores e coordenadores pedagógicos provavelmente vão encontrar muitos pontos para pensar durante a leitura deste livro centenário. Mas ele não fica apenas no impressionismo. O livro nos abre uma janela para o mundo interior dos alunos, suas inseguranças e expectativas. Nisso, ele é absolutamente singular. Sérgio somos nós.
Há poucos livros, de ficção ou não, sobre a subjetividade de professores e alunos. Há ótimas pesquisas sobre clima escolar e construção de valores morais dentro da escola. Telma Vinha, professora da Unicamp, aliás, é referência nessa área – vale ver esse vídeo dela feito para a Nova Escola.
Porém, falta um olhar mais agudo e profundo sobre pensamentos e sentimentos de quem vive a escola todo dia. Não à toa, apoio psicológico é um pedido incessante dos educadores brasileiros. E eles quase nunca são ouvidos quanto a isso. Nós ignoramos a saúde mental de quem ensina e de quem aprende. Não há política pública sobre isso e o tabu ainda é grande. Afinal, vivemos num país em que a depressão é tratada com estigma, como fraqueza ou falta de fé. Por isso que “O Ateneu” segue imprescindível. Embora vários dos seus temas estejam soterrados pelo tempo, especialmente no retrato do Brasil do fim do século 19, algumas grandes questões continuam lá.
Em boa parte das instituições de ensino, professores e alunos estão em campos opostos, como se fossem dois inimigos num duelo. A relação entre o corpo de professores também não é grande coisa e, com as famílias, o amor acabou faz tempo. Quando você vai para o mundo dos alunos, a situação também é periclitante. Como lembra o “Ateneu”, a escola não é necessariamente um reflexo da sociedade. O mais preciso é dizer que a escola é uma panela de pressão da sociedade.
Todas as tensões do país se manifestam com ainda mais intensidade dentro das instituições de ensino. É fácil entender o motivo. Os alunos são tomados por hormônios e expectativas, numa fase de grande mudança física e mental. Ao mesmo tempo, estão respondendo a demandas que eles mal entendem – imagine como foi dar aula ou aprender nesses quatro anos de polarização e violência no país. Por fim, essa panela tem formato de presídio. Alunos e professores são sufocados por grades e muros, com um sistema de organização que preza pela punição em vez da prevenção.
A arquitetura do medo, compreensível pelos números de violência do país, acaba tendo efeitos perversos com o tempo. O medo organiza os espaços e as relações entre as pessoas. Na falta de um projeto educacional, o medo vira pilar do projeto pedagógico. Resultado? Temos uma escola tóxica, que envenena seus professores e funcionários. Suzano é um caso extremo, mas está longe de ser um caso isolado. Agressões, armas, ofensas, xingamentos, tudo isso faz parte da rotina de muitos estudantes e educadores Brasil afora. E, sinto informar, isso não se resolve com aulas de moral e cívica ou com colégios cívico-militares. O buraco é mais embaixo. Precisamos nomear os problemas, um por um, para diminuir a pressão dentro da escola.
Ao longo dos últimos anos, repetimos a frase “se a educação fosse melhor, o Brasil não estaria nessa situação”. Cobramos da escola responsabilidades que ela possui (educar as crianças e adolescentes) e exigimos que ela resolva problemas que não lhe compete (resolver as crises sociais, políticas e econômicas do Brasil). Isso não está funcionando. À escola o que cabe à escola. Em vez de perguntar o que a escola pode fazer por nós, precisamos perguntar o que nós podemos fazer pelos nossos alunos e alunas, diretores, coordenadores, professores e funcionários.
E, se me permite, tenho uma sugestão: prefeitos, governadores e o MEC precisam se unir para levar programas de saúde mental sólidos e duradouros para cada instituição de ensino do país. Isso terá resultados muito melhores em índices de violência do que a transformação dos colégios em instituições militares. Sim, não se combate revólver com psicólogo. Mas talvez a gente consiga tirar a arma das profundezas mentais das pessoas antes que elas se transformem no que são: objetos para matar e morrer. A prevenção ainda é o melhor remédio.
Ah, em tempo: “O Ateneu” pega fogo no final. A escola sob ataque não é uma invenção do século 21. O problema não vai se resolver com uma volta a um passado inexistente.