Como era criar uma empresa "noutros tempos"? Estas tecnológicas portuguesas contam
Eram tempos em que os balcões Empresa na Hora estavam bem longe de existir e imperava a burocracia em qualquer coisa que envolvesse o mínimo contacto com os serviços da Administração Pública.
No espaço temporal que nos separa de 1988, ano em que a tecnológica Quidgest foi criada, muito aconteceu na sociedade e economia portuguesa. A vários níveis. “Uma aventura” é como os responsáveis da empresa caraterizam a fundação da Quidgest há três décadas, “sobretudo porque não dispúnhamos de um grande investimento inicial, e também porque estávamos a apostar numa área tecnológica onde o mercado procura, muitas vezes, importar soluções e atrair a vinda de tecnológicas estrangeiras”. Felizmente o crescimento da procura de novas tecnologias, investimentos muitas vezes apoiadas por fundos europeus e alguns clientes com sentido mais inovador, facilitaram o arranque da empresa.
“Criar uma empresa em 1993 era um bem mais solene e pensado que hoje", defende Jorge Batista, CO-CEO da Primavera BSS. "Seguramente muito mais burocrático em termos de processo, mas tal como agora, o ponto de partida para a realização de muitos sonhos de empreendedorismo”.
Mesmo a uma distância menor, em 1998, os indicadores ainda não abonavam muito a favor do espírito empreendedor em Portugal, ainda mais no sector das TI. Mas já começavam a notar-se diferenças… Segundo dados do INE, o número de empresas em atividade tinha aumentado 40% face ao ano anterior.
O volume de negócios dos sectores Indústria, Energia, Construção e Serviços subiu 12%, indicam os mesmos dados do INE, que destaca a contribuição “de forma determinante” das atividades dos serviços para o valor.
No sector dos Serviços - onde se incluíam as atividades informáticas e conexas e, a investigação e desenvolvimento e outras atividades de serviços prestados às empresas - cresceu 13%, traduzido num saldo positivo de quase 27 mil entidades, para uma representação perto dos 70% no número total.
“Hoje, a capacidade inovadora e o espírito empreendedor das empresas portuguesas são reconhecidos um pouco por todo o mundo”, Jorge Batista
Nesta altura já a Primavera, a Altitude e a Noesis se tinham juntado ao grupo das “pioneiras tecnológicas”, as duas primeiras em 1993, a terceira em 1995. Criar uma empresa nessa altura era “um forte risco assumido, inclusive ao nível da esfera pessoal”, na opinião de Eduardo Vilaça, chairman e fundador da Noesis. “Numa era em que a maioria das grandes organizações eram públicas ou estavam em transição para o sector privado, as oportunidades eram grandes, mas não existiam instrumentos de incentivos políticos, económicos ou financeiros ao empreendedorismo e consequentemente as empresas nasciam da vontade, determinação e capacidade dos empresários per si”.
A tecnologia não era “democrática” e o acesso era difícil e caro, lembra Rogério Neiva, account manager da Altitude Software, referindo-se à área de atuação da empresa, as telecomunicações, e aos sistemas analógicos da altura. “A comutação IP veio mudar tudo e baixar a barreira de entrada”. Isto para o mercado empresarial. Mas o protocolo Internet em si estava a mudar tudo no “geral”. E depois veio a “ajuda” dos telemóveis.
No início do século os números que caraterizavam a Sociedade da Informação em Portugal começaram a evoluir a “olhos vistos”. Um relatório com dados entre 2003 e 2006 indicava que 42% dos portugueses com mais de 16 anos utilizavam computador e 36% tinham acesso à internet - a partir de casa, do trabalho ou da instituição de ensino.
No que diz respeito às empresas, 82% utilizam o computador e 70% tinham acesso à internet em 2003. A quase totalidade das grandes organizações, 83% das médias e 59% das pequenas estavam ligadas à internet por banda larga passados três anos. O crescimento médio entre 2003 e 2006 foi de 43%.
Dados complementares citados pela Assoft indicam que o número de empresas relacionadas com o sector cresceu 13% entre 2008 e 2016, de 8.900 para 10.031. O volume de negócios passou dos 3,23 mil milhões de euros para 3,54 mil milhões de euros. “Curiosamente, no ano de 2012 este volume de negócios atinge o mínimo do período (3,16 mil milhões de euros) que hoje está recuperado e em franco crescimento”, referiu um porta-voz da Associação ao SAPO TEK. O número de pessoas que o sector emprega também cresceu, passando de 36,9 mil para 51,6 mil em 2016.
Nos tempos que correm, a avaliação do "potencial tecnológico" de um país já não está, de todo, centrada no “acesso à internet”, mas poderá passar pela análise, por exemplo, do número de pessoas que faz compras online. nesta era, a banda larga passou a móvel e muitas empresas já migraram para a cloud.
“Visto do lado de fora, há 25 anos, Portugal era o país do Têxtil, do Calçado, do Vinho do Porto e pouco mais”, nota Jorge Batista. O responsável da Primavera BSS considera que, graças aos investimentos que o país fez em infraestruturas tecnológicas e em educação a partir de finais da década de 90, “que nos permitiram criar as condições base para competir em mercados tecnologicamente avançados”, a par da necessidade de reinvenção como país na sequência da crise de 2011, assistiu-se a um aumento “sem precedentes” das iniciativas de empreendedorismo de base tecnológica.
“Quando começámos não era mais fácil fazer negócio em Portugal (…) mas muita coisa melhorou e começa a haver maior reconhecimento pelo software nacional, talvez porque esse reconhecimento vem também do estrangeiro”, Quidgest
A opinião de Eduardo Vilaça vai no mesmo sentido. “Face à data de fundação da Noesis, o mercado português evoluiu positivamente em todos os aspectos, mormente a manutenção da fragilidade dos instrumentos financeiros de apoio ao investimento e à partilha do risco e à reputação dos empresários”, destaca. “Surgiram novos incentivos à criação de empresas, as organizações estão cada vez mais digitalizadas e existe cada vez mais talento qualificado na área de IT”.
Agora há mais concorrência, mas também há mais mercado, para Rogério Neiva. A concorrência é boa “sempre e quando o cliente entenda que não é tudo igual”, defende. “Pelo facto de todos os carros terem três pedais, um volante e quatro rodas há uma grande diferença entre um Ferrari e um Fiat”, justifica. “Hoje tende-se a misturar tudo e pôr todos ao mesmo nível pedindo a tecnologia mais avançada com os custos da menos sofisticada”.
“O mercado amadureceu, apareceram diferentes desafios mais uma forte perceção no universo empresarial da importância do IT no modelo de negócios e consequentemente uma maior demanda”, Rogério Neiva
Atualmente estamos no meio da revolução da cloud, acrescenta Jorge Batista,“onde tecnologias disruptivas e modelos de negócio novos criaram a base para uma competição mais intensa e universal”. Para o responsável da Primavera BSS, as oportunidades são muito maiores, mas os riscos também. “Há mais variáveis para gerir, mas não diria que é mais difícil. É, sim, muito mais desafiante”.