Dize-me (ou diz-me) com quem andas e te direi quem és

Os provérbios ou ditados populares, essas frases anônimas que exprimem uma espécie de verdade universal aplicável a grande variedade de situações, nunca saem de moda.

Um dos mais populares é o célebre “Dize-me com quem andas e te direi quem és”, que, no entanto, aparece frequentemente adulterado para “Diga-me com quem andas e te direi quem és”. A mistura de pessoas gramaticais (sobretudo a oscilação tu/você) é muito característica da fala brasileira, principalmente na região Sudeste e já no Sul do Brasil também.

O que chama a atenção nesse caso específico é que se use o imperativo da terceira pessoa na primeira forma verbal (“diga”) e que as demais formas, bem como o pronome átono (“te”), sejam mantidas na segunda do singular (”andas”, “és”).

Em São Paulo, diferentemente disso, a tendência é que os verbos no modo imperativo apareçam na segunda do singular (“Vem cá!”, “Olha isso!”, “Sai daí!”, “Pega um copo de água para mim, por favor!”, “Abre uma conta no banco”, “Compra uma capa para o seu celular”, “Mostra para ele que você tem ideias novas”, “Fica quieto!”, “Volta pra mim!”). Pode não parecer à primeira vista, mas, nessas frases tão corriqueiras e familiares, “vem”, “olha”, “sai”, “pega”, “abre”, “compra”, “mostra”, “fica” e “volta” são formas de segunda pessoa do singular, compatíveis com o tratamento pela forma “tu”, não pela forma “você”, sendo esta a que é majoritariamente usada pelos falantes.

Nos estados do Nordeste, muito provavelmente essas frases seriam ditas de outra forma: “Venha cá!”, “Olhe isso!, Saia daí!”, “Pegue um copo de água para mim, por favor!”, “Abra uma conta no banco”, “Compre uma capa para o seu celular”, “Mostre para ele que você tem ideias novas”, “Fique quieto!”, “Volte pra mim!”. Nessa região, tradicionalmente, o imperativo é usado também na terceira pessoa, sem mistura de pessoas gramaticais, de acordo com a norma-padrão da língua.

(Digo “tradicionalmente” porque, com a influência da internet, hoje é muito difícil caracterizar uma fala regional. A língua tende a manter-se livre de alterações nas comunidades mais isoladas. A intensa comunicação entre falares diferentes gera todo tipo de influência e somente as pesquisas científicas podem elucidar as características dessa diversidade, de modo que não há garantia de que essa oscilação já não esteja influenciando o falar nordestino.)

Hipóteses

O que talvez explique a adulteração do ditado popular é a falta de familiaridade com a forma verbal “dize”, imperativo da segunda do singular. Vale lembrar que “diz” seria uma variante possível de “dize” (“Diz-me com quem andas e te direi quem es”), também correta à luz da norma-padrão gramatical.

Quem é bom observador já percebeu que as formas do imperativo da segunda pessoa (“Vem, cá”, “Fica quieto” etc.) são idênticas às formas de presente do indicativo da terceira pessoa do singular (“ele vem”, “ele fica” etc.). Talvez esteja aí uma hipótese de explicação do uso delas também no imperativo de terceira pessoa (você).

Conjugação na segunda pessoa do singular

Nos primeiros anos escolares, quando se aprendem as conjugações verbais, os estudantes têm de memorizar o imperativo das segundas pessoas (tu e vós) conjugando o verbo no presente do indicativo e retirando das formas de segunda pessoa o “-s” final.

Se, no presente do indicativo, temos eu digo, tu dizes, ele diz, nós dizemos, vós dizeis, eles dizem, no imperativo teremos “dize (tu)” e “dizei (vós)”.

“Tu vai” vs. “Amai-vos”

Como essas formas são pouco usadas no dia a dia, a maioria das pessoas as esquece. O que se vê com frequência hoje é o uso do pronome “tu” com as formas de terceira pessoa (“tu vai”, “tu fica”), que, no entanto, não é aceito no padrão formal da língua.

Em frases feitas (frequentemente trechos memorizados da Bíblia ou orações cristãs), ainda aparece a forma “vós”: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”; “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”; “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” etc.

Embora cada um possa se expressar como quiser, é bom ficar atento às situações em que se espera o uso formal da língua. Nesses casos, não se devem misturar as pessoas gramaticais.

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