Contendo a fúria de todos nós
No dia 1º de outubro de 2017, um atirador disparou do alto da janela de seu hotel contra uma multidão que assistia a um show de música country em Las Vegas. Na ocasião, 58 pessoas morreram e 869 terminaram feridas. Após um ano desse atentado e depois de tantos outros que se seguiram nos Estados Unidos – com destaque para o ataque na escola fundamental de Parkland, na Flórida, que deixou 17 crianças mortas – o país segue chorando seus mortos, perplexo com a dificuldade em controlar armas e munições.
Como disse o presidente Obama na época, o máximo que o país mais poderoso do mundo consegue fazer em relação aos recorrentes massacres à mão armada é enviar “pêsames e preces” às vítimas após a tragédia.
Aqui no Brasil, prestes a decidirmos quem será nosso presidente, vivemos uma situação bastante diferente dos irmãos do Norte. Ainda que tenhamos uma legislação que passou a controlar rigidamente a posse e proibir o porte de armas desde 2003, o tema ainda é central nos debates mais acalorados sobre segurança pública. Com razão, o país carrega número inaceitável de mortes causadas com armas de fogo, instrumento presente em mais de 70% das 63.880 mortes violentas registradas em 2017.
Mas será que o coração dos problemas de segurança pública do país reside nesta já cansada discussão entre liberar ou não armas de fogo para a população? Discussão que se arrasta desde 2005, diga-se de passagem. Em outras palavras, será que resolveremos todos os homicídios, roubos, latrocínios e estupros armando brasileiros e brasileiras? Não é preciso ser especialista em segurança pública para responder um retumbante "não"!
Qualquer pessoa que se debruce minimamente sobre as dificuldades dessa agenda sabe que, para mexer ponteiro e avançar na segurança pública, é preciso ir muito além da discussão sobre armas. Em um país que dedicou quase nada de seus últimos 30 anos de democracia para o tema, questões estruturantes como governança e divisão de responsabilidades entre União, estados e municípios, formação de operadores da segurança e a total ausência de dados confiáveis, inclusive sobre esclarecimento de homicídios, como o Instituto Sou da Paz demonstrou em pesquisa, são prioridades muito maiores para quem quer que seja eleito.
Essas e outras prioridades estão elencadas na Agenda Segurança Pública é Solução, que traz propostas para reduzir a violência de forma efetiva e que já foi recebida por todos os presidenciáveis.
No entanto, as campanhas e candidatos, principalmente aqueles que pregam o “libera geral” das armas, teimam em alimentar a polêmica no debate das armas e bater na legislação atual, o Estatuto do Desarmamento. O argumento recorrente é que desde que as regras do Estatuto passaram a viger é impossível comprar uma arma no Brasil.
Mas vejamos o que divulgou a própria Polícia Federal em levantamento feito pelo portal UOL no último domingo: são registradas 90 novas armas por dia, um aumento de 1104% em relação ao primeiro ano da legislação em 2004. Ora, se a lei é tão restritiva a ponto de ninguém conseguir ter uma arma, como explicar esses milhares de brasileiros e brasileiras que adquiriram novas licenças e hoje têm arma em suas casas?
A resposta está justamente na distância entre o que se fala sobre armas e o que acontece na prática. O controle feito pela Polícia Federal no Brasil tem como objetivo justamente impedir o que aconteceu há um ano em Las Vegas: impedir que pessoas sem condições físicas ou mentais tenham acesso a armas de fogo. Países como a Austrália, que viveram episódios de massacres armados semelhantes aos dos EUA, contiveram o problema da violência armada exatamente como fez o Brasil, restringindo o acesso e estabelecendo controles rígidos e periódicos para aqueles habilitados.
Exemplo vivo de que a legislação funciona, ainda que imperfeita, é o caso do atentado à democracia mais recente, com a agressão sofrida pelo candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) em Juiz de Fora (MG). Também segundo reportagem do UOL no último dia 28, o agressor do deputado, Adélio de Oliveira, afirmou em interrogatório que gostaria de ter uma arma de fogo, mas acabou barrado pelas exigências da legislação atual. E como no Brasil a realidade é mais surreal que roteiro de novela, a candidatura que mais vocifera contra o controle de armas no país acabou salva pela legislação que tanto combate.
Enquanto não levarmos a sério nossos problemas de segurança pública fugindo das armadilhas dos debates polêmicos de sempre e que desviam a atenção necessária do que realmente importa, o máximo que conseguiremos fazer por aqui é evitar que pessoas sem condições de ter armas consigam acessá-las.
Isso não resolverá de vez nossos problemas de segurança pública nem o estrago que as armas já espalhadas na sociedade podem fazer, mas contém a hemorragia da violência armada no Brasil. E já é mais do que os Estados Unidos conseguem fazer sobre o tema.