De ícone pop a fantoche de militar, argelino sai do poder como múmia
Nos últimos anos, as aparições públicas de Abdelaziz Bouteflika, presidente da Argélia durante duas décadas, eram motivo de constrangimento e piadas mórbidas.
Vítima de um acidente cardiovascular em 2013 que o deixou em estado vegetativo, Bouteflika surgia em salas parcamente iluminadas, cercado por enfermeiros-assessores, em imagens meticulosamente editadas pelos órgãos de Estado.
Para as massas que foram às ruas contra sua quinta candidatura, o presidente mumificado simbolizava um regime engessado e decadente. Confirmada no começo da semana, a renúncia é o ponto final na trajetória de um símbolo da história pós-colonial da Argélia.
Nascido em 1937, Bouteflika entra em cena na sua terra natal, Ujda, no vizinho Marrocos, onde participa da formação de uma das principais unidades da Frente de Libertação Nacional (FLN).
O movimento derrubou o potentado colonial francês numa das mais intensas lutas da descolonização africana, elevada a mito cinematográfico por Gillo Pontecorvo, realizador do monumental “A Batalha de Argel” (1966).
Conhecedor do terreno e dos atores locais, o famoso clã de Ujda venceu a disputa pelo poder dentro da FLN contra o grupo de ideólogos exilados na França e assumiu o comando do Estado independente.
Em 1963, Bouteflika, um baixinho de olhos azuis e sorriso triunfante, era, aos 26 anos, ministro das Relações Exteriores e ícone da luta anti-imperialista no Sul Global.
Durante os 15 anos que passou no cargo, a capital Argel acolheu líderes do mundo todo, inclusive o governador pernambucano Miguel Arraes, recebido em 1965.
Apoiador da luta armada dos movimentos anticoloniais em Angola e Moçambique, Bouteflika sabia que a revolução tinha seus limites.
Em 1975, o terrorista disfarçado de revolucionário Ilich Ramirez Sanchez, conhecido como “Carlos, o Chacal” aterrissou em Argel um avião repleto de reféns tomados durante um ataque à sede da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, em Viena.
Numa negociação “eficaz, relaxada e supertranquila”, segundo telegrama da época do embaixador americano em Argel, Bouteflika desarmou a situação. Carlos entregou os reféns em menos de 48 horas.
A chegada ao poder de uma nova geração de generais formada na União Soviética interrompeu o período áureo da carreira de Bouteflika. Junto a fundadores da FLN, ele é marginalizado e inicia uma segunda vida como conselheiro de monarcas do Oriente Médio.
Nos anos seguintes, uma sucessão de manifestações monumentais obriga o regime a organizar um processo de abertura eleitoral. Mas a democracia também tem seus limites.
Em 1992, desesperada com a vitória iminente da Frente Islâmica de Salvação, o governo cancela as eleições legislativas e deflagra uma guerra civil que matou 100 mil pessoas. Em 1999, as exangues Forças Armadas apelam para a velha geração e conduzem Bouteflika à Presidência.
Celebrado como o regresso a um passado idealizado, o governo Bouteflika contribui para a pacificação do país e, sobretudo, para a reorganização do aparelho de Estado.
Jogando com o trauma dos anos 1990 e aproveitando a alta de preços de commodities para multiplicar as ajudas às camadas mais pobres, o governo conseguiu evitar a chegada da Primavera Árabe, que sacudiu os vizinhos em 2010.
Sem cartas na manga, o aparelho militar continuou se escondendo atrás de Bouteflika, apesar da sua cada vez mais evidente fraqueza física.
Porém, a tentativa de emplacar um quinto mandato de um presidente que não se exprime em público há mais de dois anos provocou uma onda de manifestações e obrigou o regime a mudar os planos.
Ícone pop dos 1970 e fantoche de militar nos 1990, Bouteflika virou múmia nos 2000.
Sem uma nova geração de líderes e com uma oposição em frangalhos, a Argélia se prepara para um novo mergulho no vazio. E, desta vez, ela não poderá recorrer ao seu coringa.