Discursos políticos, avaliações de restaurante e buscas no Google viram versos
Poemas feitos com comentários de iFood e fotos de ex-presidentes da República. Robôs que criam haicais e canções de protesto automatizadas. E PDFs com trilha sonora que lembram uma versão lisérgica do concretismo.
Sob influência meio dadaísta e usando a internet para furar o esquema editorial, uma nova geração da poesia brasileira tenta fundir a arte conceitual com as mídias digitais.
Solicitei o pedido as 19:55 de hoje, já são 22:14 e ainda não chegou nem consigo ligar na pizzaria para informações, isso sim é um absurdo e meu lazer com minha mulher e filha de apenas 2 anos se foram, sabe o pq ? atraso mal atendimento sem retorno nem um não chegou nada e ainda tenho que dar nota?
Do livro “Michael Temer Has Left the Building” (Shiva Press), de Guadalupe Amor e Rafael Cabral. Feito a partir de comentários no aplicativo iFood
Surgida há um ano, a editora paulistana Shiva Press, por exemplo, lança os livros nos formatos PDF e HTML. O download é gratuito, mas aceitam "gorjetas" em bitcoin.
Muitos desses livros não foram "escritos", mas construídos com textos já existentes, como manuais de armas, constituições federais e anotações de sonhos. "Acho que livros não são retângulos de papel, mas experiências concentradas de linguagem", diz Raphael Sassaki, editor da Shiva.
Outra editora, a La Bodeguita, do Recife, surgiu em 2016 e já lançou mais de 30 livros, revelando boa parte da produção poética dessa geração —hip-hop, videogames, seriados de TV e a internet são algumas das matérias-primas.
"Sempre vai ter alguém tentando quebrar os limites da expressão", diz o editor Ítalo Dantas. "É uma espécie de cavalo de Troia, um vírus implantado dentro do círculo."
Uma influência do movimento é a poesia conceitual americana, em que escritores criam menos e editam mais, tendo como ideia central a missão de dar sentido ao ruído da vida contemporânea.
Mais do que versos, esses poetas desenvolvem técnicas para filtrar blocos de linguagem, separando a poesia escondida na língua comum.
"O código de uma imagem JPEG é feito de material idêntico ao dos sonetos de Shakespeare. Em outras palavras, todas as mídias são essencialmente texto alfanumérico. Logo, toda mídia é literatura", diz o poeta americano Kenneth Goldsmith, um dos expoentes da poesia conceitual.
Ele se tornou célebre ao lançar livros que reproduzem todas as palavras de uma edição do New York Times ou com centenas de boletins de trânsito —este último foi lançado no Brasil pela editora Luna Parque, em adaptação de Marília Garcia e Leonardo Gandolfi.
16h35
(...) Meu nome é Reginaldo e sou viciado na bala 7Belo. Realmente é difícil parar, né, realmente. O Yakult não mudou de gosto. Na verdade, o Yakult mudou de preço. E muito. Tem o dia do Yakult ainda? Tem sim, eu lembro que minha mãe falava, e eu não sei se ela falava porque fazia mal mesmo ou porque era caro e não dava pra comprar toda hora. Ela falava: um só por dia. E é um só por dia mesmo. Eu também aprendi assim. Acho que é verdade, se não me engano acho que, no máximo, dois por dia, por causa dos lactobacilos vivos. Exato, é isso mesmo, teve até uma vez que falaram: tombou um caminhão de Yakult e havia mais de dois milhões de lactobacilos mortos no dia desse tombamento. E doce de banana no copinho? Adoro.
Do livro “Trânsito” (Luna Parque), de Marília Garcia e Leonardo Gandolfi. Inspirado em “Traffic”, de Kenneth Goldsmith, o livro reproduz três horas de uma rádio paulistana de informação viária, na sexta antes do feriado de 12 de outubro de 2015
A mesma casa também foi pioneira na publicação dessa literatura "não criativa" feita por autores nacionais ao lançar "Sessão", de Roy David Frankel, no ano passado.
No livro, o autor faz uma grande montagem utilizando as falas de deputados durante a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Pelo povo da minha
Caxias
do Sul,
da serra
gaúcha,
do Rio Grande
do Sul, do
Brasil,
pela dignidade e
pela esperança do povo
brasileiro,
eu voto sim.
Viva o
Brasil!
Viva o
Sergio
Moro!
O presidente
Michel Temer
esteve nesta Casa por
24
anos,
foi presidente
deste Poder
por três vezes
e reúne
todas
as qualidades
morais e políticas
indispensáveis para
Um dia, juntos
senhores, construirmos
há pouco mais a ponte para o futuro.
de 500 anos,
homens inspirados
também pela honra
atravessaram o mar
tenebroso para fundar
aqui
aquela que,
entre outras mil,
és tu,
Brasil,
ó
Pátria
amada.
Quero
Do livro “Sessão” (Luna Parque), de Roy David Frankel. Poemas feitos a partir das notas taquigráficas da sessão de votação do impeachment, na Câmara dos Deputados
Antes disso, Angélica Freitas já havia feito uso da técnica em "Um Útero é do Tamanho de um Punho", livro lançado em 2012, ao se apropriar de frases encontradas no Google para representar clichês atrelados à imagem feminina.
a mulher quer
a mulher quer ser amada
a mulher quer um cara rico
a mulher quer conquistar um homem
a mulher quer um homem
a mulher quer sexo
a mulher quer tanto sexo quanto o homem
a mulher quer que a preparação para o sexo aconteça lentamente
a mulher quer ser possuída
a mulher quer um macho que a lidere
a mulher quer casar
a mulher quer que o marido seja seu companheiro
a mulher quer um cavalheiro que cuide dela
a mulher quer amar os filhos, o homem e o lar
a mulher quer conversar pra discutir a relação
a mulher quer conversa e o botafogo quer ganhar do flamengo
a mulher quer apenas que você escute
a mulher quer algo mais do que isso, quer amor, carinho
a mulher quer segurança
a mulher quer mexer no seu e-mail
a mulher quer ter estabilidade
a mulher quer nextel
a mulher quer ter um cartão de crédito
a mulher quer tudo
a mulher quer ser valorizada e respeitada
a mulher quer se separar
a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais
a mulher quer se suicidar
Do livro “O Útero é do Tamanho de um Punho”, de Angélica Freitas.
Poema feito a partir do recurso de autocompletar do Google
Mais um exemplo recente é o livro "O Teatro do Mundo", lançado no ano passado pela 7Letras, em que a poeta Catarina Lins narra uma odisseia sentimental usando desde manuais de japonês até as tatuagens de LeBron James, astro do basquete americano.
No texto que acompanha o livro, o poeta Carlito Azevedo define a sua leitura como "um dilúvio de atos de um teatro sintético futurista revisto pelos olhos de agora".
Na visão da austríaca Marjorie Perloff, uma das maiores teóricas da literatura não criativa, há uma continuidade histórica entre a tradição brasileira e a americana. "Para os concretistas, 'forma = conteúdo'. A partir daí, é só um passo até que se façam poemas inteiros com palavras e frases apropriadas, o que é a essência do conceitualismo", diz.
"Em ambos os casos, o interesse não está na habilidade de inventar frases, mas na habilidade do poeta de usar materiais existentes para criar algo novo", completa a crítica.
Goldsmith concorda que a obra dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos é precursora da estética atual. "Quando a linguagem se torna imagem, como ocorreu na era digital, podemos agradecer aos concretistas brasileiros. Eles foram visionários que previram a literatura do século 21."
Mas há algumas diferenças entre a estética do conceitualismo americano e a apropriação dessas técnicas por aqui.
Nos catálogos das novas editoras digitais, é esperado que cada livro traga alguma técnica nova, misturando diversos tipos de estratégias —clássicas ou conceituais— em busca de um "efeito surpresa".
"Os conceituais estão sempre preocupados com a pureza do método. Acho que no nosso caso estamos usando essas técnicas para fazer qualquer coisa, de bots românticos até PDFs que fazem dançar", diz Sassaki, sobre a inclusão de músicas em livros.
Outra influência vem de editoras como Troll Thread, Gauss-PDF e Truckbooks, que expandiram a lógica do ready-made para extremos que não haviam sido pensados ao usar diferentes mídias para lançar centenas de livros no Tumblr.
"Nós estávamos interessados em curar a informação para produzir sentido. A nova geração, incluindo aí os robôs, se deleita na alegria de acumular informação por si só. Eu os invejo. Eles fazem nossa geração parecer convencional", diz Goldsmith, sobre a atual cena pós-conceitual.
Uma das publicações da Troll Thread, por exemplo, acompanha os movimentos do personagem Link no videogame "The Legend of Zelda".
Em outro PDF, o poeta Joey Yearous-Algozin tenta relembrar as pessoas mortas no ataque terrorista às Torres Gêmeas evocando seus nomes.
Para a poeta Holly Melgard, fundadora da Troll Thread, os livros publicados ali são "os que não conseguiram sair em nenhum outro lugar, por serem muito grandes e caros, repetitivos, excessivos, desinformados, simples, irreconhecíveis e ferais ou por serem culturalmente e institucionalmente não palatáveis".
A proposta central dessas editoras é ter um controle total sobre a própria criação, estabelecendo um sistema de produção com custo mínimo.
Essa é uma ideia resumida pelo próprio título do livro-manifesto "Como Parar de se Preocupar com o Estado da Literatura Quando o Mundo Está Queimando e Tudo o que te Interessa É se Alguém Está te Lendo de Fato", volume publicado pela Troll Thread.
"Como não precisamos de dinheiro para que isso funcione, teoricamente podemos criticar sistemas opressivos com obras de arte que o mercado não toca, algo sem deuses, sem mestres", diz Melgard.