'Europeus acham que o Brasil me corrompeu de vez', diz Contardo Calligaris
Entre os pacientes que esquentaram o divã do psicanalista Contardo Calligaris, um deles foi especial, rendeu um livro e não é bem uma pessoa, mas uma nação. “Faz parte da cultura brasileira olhar para o país como se ele fosse um sujeito”, diz o italiano, colunista da Folha e radicado por essas bandas há mais de 30 anos.
“É como se a história e a presença desse seu passado justificassem tratar o Brasil como uma pessoa. Isso é algo único e onipresente aqui”, disse em conferência que abriu a programação da Casa Folha neste sábado (28), na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). O debate foi mediado por Uirá Machado, editor da Ilustríssima.
Assim que chegou a terras brasileiras, nos anos 1980, Calligaris procurou se inteirar das neuroses do país pelo que escreveram “analistas” anteriores: Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre... “Pode se engajar naquelas leituras como se fossem pontos de vista diferentes sobre um mesmo paciente”, disse.
Entre as neuroses, detectou a herança de uma sociedade escravocrata que, até pouco tempo, “fazia negros subirem pelo elevador de serviço” e botava, na geladeira das classes médias paulistanas, “presunto para a família na prateleira de cima, e presuntada para a empregada na prateleira de baixo”.
Calligaris também percebeu com surpresa que só no Brasil as crianças corriam soltas por restaurantes, fazendo os garçons se espatifarem no chão. E viu empreendimentos que não achou em nenhum lugar do mundo, como os motéis aos moldes brasucas, quintessência do que chama de “o outro lado do Equador do outro lado do Equador”.
Suas descobertas dão corpo ao livro “Hello, Brasil! E Outros Ensaios”, lançado originalmente em 1991 e republicado no ano passado, com acréscimo de outros textos, pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha. Os textos incluem reflexões sobre assuntos que vão de Xuxa ao jeitinho.
“Escrevi esse livro muito mais para entender a minha viagem ao país do que sobre o Brasil, mas ele é completamente sobre o Brasil”, disse o ensaísta às pessoas que atulharam a conferência, sentadas até no chão. “As identidades culturais são determinadas pela nossa história. A gente carrega a história do Brasil.”
O psicanalista carregou também idiossincrasias do país que escolheu. “Me tornei um pouco excêntrico aos olhos dos europeus. Sobretudo meus amigos franceses acham que o Brasil me corrompeu de vez.”
Ele dá exemplo: deixou de promover doutrinas únicas na psicanálise e passou a visitar analistas de várias orientações. “Pratico turismo psicoterapêutico. Quando faço viagens extensas, visito junguianos, pessoas de outras linhas. Acho uma delícia”, disse ele, que se define como um “lacaniano excomungado”.