Falta de reagentes deixa venezuelanos doentes sem diagnóstico de Aids
Gilbert Rodríguez esperou por um milagre até morrer no fim da Terça-Feira Gorda de Carnaval.
Ele, como a mulher, a agora viúva Jesseña Hernández, tinham fé em que poderes divinos seriam capazes de limpar as manchas negras que cobriam seu rosto, seus braços, seu torso, suas pernas e até seus órgãos internos.
Antes de ficar incapacitado devido ao sarcoma de Kaposi, um tipo de câncer, Rodríguez gostava de posar para fotografias mostrando as chagas que lhe tomavam o corpo.
Ele tinha a esperança de que, após o milagre se concretizar, poderia usar o material que coletava há meses para dar seu testemunho de fé.
“Ele queria mostrar a todos o poder de Jesus”, diz Jesseña, diante do corpo desfigurado do marido, já dentro de um caixão em uma funerária nos arredores do cemitério Del Sur, um dos maiores de Caracas.
O Sarcoma de Kaposi se transformou em um tumor associado à Aids no início dos anos 1980, quando homens americanos aparentemente saudáveis começaram a ser diagnosticados com a doença, rara fora do continente africano.
Logo as manchas negras se tornariam o símbolo de pacientes HIV positivo em um momento em que estar infectado pelo vírus da Aids era uma sentença de morte.
Com o avanço dos tratamentos que transformaram a Aids em uma doença crônica, o sarcoma de Kaposi passou a ser uma enfermidade que remete a um passado trágico e que raramente acomete pacientes controlados atualmente.
Na Venezuela, casos como o de Rodríguez, no entanto, têm crescido nos últimos meses.
O ressurgimento de casos da doença, tão raros mundo afora, é reflexo da escassez e, quando não, absoluta falta de antirretrovirais, os remédios capazes de reduzir a quase zero a carga viral de portadores do vírus HIV e impedi-los de desenvolver a Aids.
“Há tão pouco medicamento e tão pouca resposta do governo que nós nos perguntamos se não estão tentando realizar um genocídio seletivo para simplesmente acabar com os casos de Aids na Venezuela, matando todos os pacientes”, diz a infectologista Maria Eugenia Landaeta, coordenadora do departamento de HIV/Aids do hospital Universitário de Caracas, o mais importante centro de tratamento da doença na Venezuela.
Nos últimos quatro meses, os quase 7.000 pacientes que se consultam no hospital não receberam nenhum tipo de tratamento. Alguns poucos, em casos mais graves, recebiam remédios que os próprios médicos, como Landaeta, levavam para o hospital.
Quase todos são doações de parentes de enfermos que morreram e decidiram dar os medicamentos que tinham em casa.
“A maioria está vencida, mas é o que temos. Entre fornecer nada e algo, preferimos oferecer o que temos, mesmo que não seja o ideal.”
Landaeta trabalha há mais de duas décadas no Hospital Universitário e está cansada da situação crítica dos últimos anos.
“Eles estão morrendo como moscas, e nós não temos o que fazer, simplesmente não temos nada a oferecer a não ser carinho”, diz. “Nem mesmo medicamentos para dor ou antibióticos nós temos.”
Na última semana, Landaeta contou quatro mortes. Essa, aliás, é a média semanal desde outubro do ano passado, quando o estoque de antirretrovirais chegou a zero.
Landaeta conhece só os números do departamento que dirige. Sobre o que acontece com pacientes do resto do país, ela e seus colegas têm apenas uma ideia vaga.
“O Ministério da Saúde não divulga nenhum dado há anos, não temos ideia de quantos pacientes com Aids há na Venezuela, quantos morreram no último ano e nem mesmo quantos infectados estão identificados”, afirma Martín Caballo, diretor da clínica médica de DST/Aids do Universitário.
“Trabalhamos no escuro", diz.
Desde 2014, quando a crise se acentuou, o governo venezuelano iniciou um apagão estatístico gradual.
Hoje é praticamente impossível obter informações oficiais básicas como o número de nascimentos, mortes ou vítimas de crimes violentos.
Todos os dados, inclusive os econômicos, como inflação, PIB ou custo de vida, são organizadas por fontes não oficiais e, muitas vezes, baseiam-se apenas em estimativas.
“Sem essas informações não há como desenvolver políticas públicas de saúde, e o resultado é isso que estamos vivendo aqui”, afirma Caballo.
Em março, o governo venezuelano aceitou uma oferta de doação da Organização Pan-Americana de Saúde do antirretroviral Acriptega por três anos, mas o hospital recebeu só um lote que permite atender os pacientes por três meses.
Medicamento de última geração, o Acriptega apresenta resultados muito satisfatórios em um grande número de pacientes, mas não em todos.
“Acreditamos que 60% de nossos pacientes poderão se beneficia. Os outros 40% terão de testar. Estimamos que um terço dos pacientes que temos terá de ficar sem tratamento”, diz a infectologista.
A chegada do Acriptega não resolve os problemas estruturais da crise que vive não só o departamento de HIV/Aids do Universitário, mas todo o sistema de saúde venezuelano.
Falta de tudo em todos os lugares, e o apagão do início do mês pôs em evidência essa carência.
Sem geradores, diversos hospitais ficaram às escuras e mais de duas dezenas de pacientes morreram por não haver energia para manter os equipamentos ligados.
“É uma situação crítica. Muitas vezes identificamos novos pacientes de Aids nas consultas ambulatoriais ou em testes rápidos que nem sempre dão um resultado confiável”, conta David Flora, médico que atende no Universitário.
“Nem mesmo o Elisa 3, uma versão antiga do teste mais confiável, nós temos disponível. Não temos nada.”
Javier Ortega recebeu com alegria e esperança três caixas de Acriptega que Flora lhe deu na última semana. Ele é um dos portadores do vírus HIV do qual não se tem certeza se o medicamento fará mais bem do que mal.
Ortega também sofre com um tipo de câncer quase sempre ligado a doentes que já desenvolveram a Aids.
Ele, como a grande maioria dos pacientes venezuelanos, ficou quase seis meses sem receber nenhum tipo de antirretroviral.
Perdeu quase 20 kg, viu o câncer se expandir e hoje está tão debilitado que não consegue nem caminhar.
“É uma situação que me deixa com raiva. Sei que não precisava estar assim, podia ter uma vida normal, mas estou em uma cadeira de rodas. E a cada dia vejo mais gente como eu morrer”, diz, antes de ter o braço higienizado com um chumaço de algodão embebido em uma água amarelada.
A enfermeira que atende Ortega explica que não há álcool para realizar o procedimento mas que a água é limpa. Devido à escassez de produtos apropriados, é assim que ela trabalha há meses.
Ortega teve sorte de não ser acometido pelo sarcoma de Kaposi. Ele, como todos os pacientes que vêm ao Universitário com frequência, teme ser contaminado pelo vírus.
Rodríguez, o rapaz de 27 anos que morreu devido ao sarcoma de Kaposi, chegou a crer que tivera sorte.
Dizia que, por ter sido tão castigado pela doença, sua recuperação milagrosa teria ainda mais impacto entre os fiéis de sua igreja.
“Ele planejava fazer apresentações por toda a Venezuela”, diz a viúva Jesseña.
Ela conta que ficou tão desesperada com o avanço brutal da doença que passou a acreditar em um milagre. “Esperei até o último momento, até ver ele respirar mais fundo e ir embora. O milagre não veio.”
O tratamento tampouco chegou a tempo para salvá-lo.