O corvo eterno
A "corvologia" acaba de ganhar um livro delicioso, mas para que se aprecie o impacto da notícia será preciso explicar o que vem a ser essa palavra que os dicionários não registram.
"Corvologia" é o pequeno mas animado campo dos estudos sobre "O Corvo", o poema mais famoso do americano Edgar Allan Poe (1809-1849) e um dos mais populares da história. Inclui, em posição de destaque, suas traduções.
Para quem ainda não ligou o nome ao bicho, uma pista: "Nevermore". Sim, estamos falando daquele poema lúgubre, de clima gótico como o de um clipe de The Cure, no qual uma ave preta repete a um sujeito de luto pela morte da amada seu bordão cruel: "Nunca mais!". Não é preciso tê-lo lido para conhecer seu impacto pop.
A boa notícia é o lançamento de "O Corvo" (Companhia das Letras), volume de capa dura que traz, além do poema em inglês e duas de suas traduções mais famosas para o português, três ensaios de Poe sobre sua oficina poética —a começar pelo divertido "A filosofia da composição", em que ele apresenta como resultado de pura racionalidade a criação de uma peça literária desvairadamente romântica.
Se fosse só isso, o livro careceria de novidade. Esta é fornecida pelos dois ensaios que, amarrando tudo, desenham para o leitor os princípios da corvologia e a fazem avançar com finas contribuições originais. Assina-os o poeta Paulo Henriques Britto, tradutor do primeiríssimo time.
Não é livro para todos os paladares. Os pormenores técnicos de versificação que Britto invoca em seus ensaios se justificam no contexto, mas podem assustar o leigo. De todo modo, bastam alguma familiaridade com a leitura de poesia e um ouvido afinado para pegar o espírito da coisa.
Como corvólogo diletante de longa data, fiquei feliz ao descobrir a preferência de Britto pela tradução de Fernando Pessoa, da qual também sou fã. Para ele, trata-se de "um poema em que são recriados de modo preciso os efeitos do texto inglês em todos os planos --do sentido, do metro, da rima".
Professor de tradução da PUC-Rio, Britto vai além, sustentando que a versão do portuga aperfeiçoa o original ao omitir o nome da amada morta, Lenore, resolvendo uma contradição introduzida por Poe: "Se neste mundo a amada não tem nome [é o que o poema diz], como pode seu nome aparecer num poema?".
Acredito que, apesar de engenhosa, a ideia de aperfeiçoamento seja um arroubo de crítico apaixonado, por não levar em conta uma provável intencionalidade na contradição original e por desconsiderar que, ganhando um nome, e ainda por cima um nome que rima com "nevermore", a morta adquire um peso e uma reverberação que Pessoa lhe subtrai.
Se não traz aperfeiçoamento, "O Corvo" de Pessoa é uma maravilha que, por contraste, ganha mais brilho ao lado da versão esquisita de outro monstro das letras, Machado de Assis, cuja tradução ritmicamente traidora --o que, no caso desse poema hipnótico, caracteriza pecado mortal— é demolida com tato, mas sem dó.
Não é, contudo, ao atacar a pouco prestigiosa tradução de Machado que Britto deixa uma contribuição fundamental. Seus ensaios crescem ao serem lidos no contexto dos debates corvológicos como refutação à defesa enfática --e curiosamente influente— que, no livro "O Corvo e Suas Traduções" (Lacerda), Ivo Barroso fez de uma tradução interessante, mas menos rigorosa que a de Pessoa no metro e na rima: a do jornalista mineiro Milton Amado.