Governo francês contrata escritores de ficção científica para imaginar ameaças

Há mais de 120 anos, o escritor inglês H.G. Wells (1866-1946) descrevia, em “A Guerra dos Mundos”, o caos provocado por uma invasão fictícia da Terra por marcianos.

Décadas mais tarde, em narrativas como “O Homem Bicentenário” (1976), o russo-americano Isaac Asimov (1920-1992) imaginaria robôs que transcendiam suas funções programadas, desenvolvendo cacoetes humanos.

Agora, uma iniciativa do Ministério das Forças Armadas da França pretende colocar a serviço da defesa nacional essa capacidade da ficção científica de desenhar cenários ainda hoje insólitos.

A Agência de Inovação da Defesa (AID), subordinada à pasta, anunciou em julho que vai recrutar quatro ou cinco autores do gênero para tecer conjeturas que passem longe dos esquemas cartesianos de engenheiros e estrategistas militares.

Se ninguém espera do grupo criações do calibre das de Asimov e H.G. Wells, que para muitos formam com Arthur C. Clarke (1917-2008) a Santíssima Trindade da literatura de antecipação, a ideia é que os escritores —desenhistas também serão aceitos— forneçam pistas para que as Forças Armadas se preparem para o impensável.

O documento oficial em que o programa é apresentado fala em “transformar a dificuldade em oportunidade”.

“Queremos pessoas criativas, que nos digam, por exemplo, que o tanque de guerra de daqui a 50 anos será um organismo vivo ou que haverá tecnologia para se ficar invisível”, diz à Folha Emmanuel Chiva, diretor da AID, instituída há menos de um ano, mas já dotada de orçamento na casa de 1 bilhão de euros (R$ 4,3 bilhões).

Ele afirma que o quinteto alistado terá de apresentar “o que vê e pressente em termos de inovação tecnológica e ruptura, como Estados substituídos por redes sociais ou fabricantes de armas subitamente dotados de uma capacidade de produção espetacular”.

Chiva resume assim o papel do colegiado, cujos trabalhos devem se iniciar antes do fim de 2019: definir cenários, prever ameaças, imaginar tecnologias e levar isso às equipes responsáveis por responder concretamente aos perigos do que está por vir.

“A existência do grupo será conhecida, mas o teor de seus trabalhos, é claro, restará confidencial. Não queremos dar ideia aos nossos melhores adversários”, completa ele, lembrando que os escritores serão contratados por empreitada.

A unidade em que essas Cassandras soarão o alarme de distopias mais ou menos prováveis receberá o nome de “red team” (equipe vermelha). 

Trata-se do termo usado nos EUA para se referir a times que atuam em empresas como “sabotadores internos”, buscando brechas em sistemas de segurança ou falhas operacionais e, assim, testando a capacidade de resposta das firmas.

Apesar do aparente ineditismo em nível europeu, o trabalho de prospecção que os escribas franceses serão chamados a desenvolver já é realizado há décadas por alguns de seus colegas americanos.

Criada em 1958, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (Darpa, na sigla original) deixa a rédea solta para a imaginação de seus colaboradores —suas tropas proféticas incluem roteiristas e desenvolvedores de videogames, além de autores literários.

O próprio Asimov do alto deste texto foi recrutado em 1959, quando começou a conceber um escudo antimísseis. Abandonou a parceria, segundo consta, por temer que o gradativo envolvimento com questões de segurança nacional (algumas secretas, sem dúvida) afetasse sua atividade literária.

Hoje, nos serviços de inteligência dos EUA, há grupos fixos dedicados a exercícios especulativos sobre ameaças. Um deles envolve a redação de cartas atribuídas a líderes autoritários. Tudo visa a treinar as instâncias decisórias para situações-limite.

De volta à França, as novidades apresentadas pelas Forças Armadas nas últimas semanas vão além do brainstorming dos autores de sci-fi.

O catálogo inclui engenhocas aéreas que talvez fizessem vibrar outro homem de letras ligado momentaneamente ao meio militar, Antoine de Saint-Exupéry (1900-44). O pai de “O Pequeno Príncipe”, também aviador, pilotava uma aeronave de reconhecimento que desapareceu no Mediterrâneo durante uma missão no fim da Segunda Guerra (1939-45).

O mais vistoso dos aparelhos exibidos no tradicional desfile do 14 de Julho, na avenida Champs Elysées, foi o “flyboard”. Trata-se de uma plataforma propelida por quatro pequenos turborreatores que dá a seu ocupante ares de Surfista Prateado, o super-herói das histórias da Marvel.

Movido a querosene, o equipamento tem autonomia de dez minutos e atinge até 190 km/h. Em fase de testes, pode vir a ser usado pelo Exército para retirar feridos de zonas de conflito, ou por bombeiros, para acessar andares elevados de prédios em chamas.

Porém, no primeiro grande teste, falhou. Não conseguiu atravessar os cerca de 35 km do canal da Mancha, que liga a França à Grã-Bretanha, nos prometidos 20 minutos. Despencou a meio caminho. 
E olha que os catastrofistas do “red team” ainda nem começaram a trabalhar.

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