HQ boicotada em Singapura contesta história oficial da região

"E se os relatos estiveram errados?", questiona o quadrinista singapuriano Charlie Chan Hock Chye sobre a história oficial de seu país.

O artista de 80 anos é visto atualmente como o maior autor de histórias em quadrinhos da cidade-Estado insular localizada no Sudeste Asiático. Fez carreira com obras falsamente escapistas com mensagens subliminares críticas aos sistemas autoritários que governam o país desde sua fundação, em 1819, como colônia britânica.

Recém-lançado em português, "A Arte de Charlie Chan Hock Chye" é uma espécie de biografia ilustrada de seu protagonista, assinada pelo quadrinista malaio Sonny Liew.

O álbum chega ao Brasil dois anos após ser eleito o livro do ano pelas revistas The Economist e Publishers Weekly e a melhor graphic novel de 2016 pelo jornal Washington Post.

Em 2017, a obra venceu três troféus da premiação máxima da indústria, o Eisner Awards (escritor/desenhista, design de publicação e publicação estrangeira).

A versatilidade do traço de Chye e a audácia de suas obras beiram o fantástico. E, apesar de factível, Charlie Chan Hock Chye é fruto da imaginação de Sonny Liew. "Eu queria fazer um livro que tratasse da história de Singapura, mas que aparentasse ser uma obra sobre a história dos quadrinhos", diz o autor à Folha em sua casa, em Singapura.

As 320 páginas do livro intercalam ilustrações de Liew para um depoimento fictício concedido por Chye com excertos de obras originais e fotos antigas do autor veterano e reconstituições das experiências de vida do artista.

Segundo o relato, Chye nasceu em 1938 e testemunhou a ocupação japonesa em Singapura durante a Segunda Guerra Mundial, o retorno ao domínio britânico após o conflito e a hegemonia do conservador Partido de Ação Popular desde 1959, quando ganhou sua autonomia.

O livro de Sonny Liew expõe a leitura alternativa do personagem à narrativa oficial imposta pelos governos singapurianos.

Aos 43 anos, Liew tem assistido sua carreira mudar por completo. Apesar de nascido na Malásia, foi criado em Singapura e passou parte de sua vida adulta no Reino Unido e nos Estados Unidos, desenhando HQs da Marvel e da DC e de franquias como Comandos em Ação e Transformers.

De volta a Singapura, foi agraciado com uma bolsa federal para a produção de seu trabalho mais pessoal até então, o projeto que culminaria em "A Arte de Charlie Chan Hock Chye".

"Tudo o que falei para os meus editores é que queria fazer um livro sobre Singapura que também fosse uma versão ficcional da história dos quadrinhos locais", conta Liew.

Em 2015, às vésperas do lançamento do livro em Singapura, com uma tiragem de mil exemplares já impressa, o Ministério da Cultura singapuriano retirou a verba destinada a Liew.

Em uma carta enviada ao jornal The Straits Times, as autoridades justificaram a decisão, dizendo que o livro "mina potencialmente a autoridade e a legitimidade do governo e de suas instituições públicas".

Liew diz que tinha consciência do conteúdo subversivo de seu trabalho, mas não imaginava que a decisão do governo poderia ser tão enfática. No entanto, a retirada da verba teve aspectos positivos e auxiliou na chegada do livro a outros países, com edições em inglês, francês e espanhol.

"Isso ajudou a chamar atenção para o livro em um nível que a editora nunca imaginou e acabamos esgotando rapidamente as primeiras tiragens. Talvez ainda mais importante tenha sido como isso tudo transformou o livro em uma referência no debate sobre censura por aqui."

Liew concebeu não apenas a história de vida de Charlie Chan Hock Chye, mas também os diversos estilos ao longo de diferentes fases da vida de seu personagem. No início de sua carreira como ilustrador, impressionado com o "deus das HQs japonesas" Osamu Tezuka (1928-1989), seus trabalhos remetem ao estilo caricato da fase mais infantil do criador do Astro Boy.

Já nos anos 1980, após uma visita a uma convenção de quadrinhos nos Estados Unidos, Chye ganha um traço sombrio semelhante ao do quadrinista Frank Miller no clássico "Batman - O Cavaleiro das Trevas".

"O livro contém todo tipo de estilo artístico e o traço do Charlie muda ao longo do tempo", explica Liew. "Eu queria que ele fosse meio camaleônico, mas que isso também possivelmente criasse uma dúvida na cabeça do leitor, se ele estava apenas copiando o estilo de outras pessoas ou se ele era realmente um criador original", diz.

De acordo com Liew, a versatilidade de seu personagem e a estética enciclopédica do livro foi definida com auxílio do quadrinista David Mazzucchelli, autor da obra-prima "Asterios Polyp" (Companhia das Letras) e também seu professor na Rhode Island School of Design.

A Arte de Charlie Chan Hock Chye

Autor: Sonny Liew. Tradução: Maria Clara Carneiro. Ed. Pipoca & Nanquim. R$ 69,90 (320 páginas)

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