Mar Mediterrâneo se tornou um cemitério, afirma a italiana Igiaba Scego
Como deve ser o trabalho de um escritor que opera numa língua que também perpetua mazelas? Uma romancista italiana descendente de somalis e um poeta suíço que convive em meio caldeirão de idiomas esboçaram algumas respostas em um debate que esbarrou em racismo, crise migratória e poder da literatura.
A mesa Minha Casa, realizada na tarde desta sexta (27) na Flip, reuniu os autores Igiaba Scego e Fabio Pusterla.
“Escrever é um ato político. É a única arma que tenho”, disse Scego, que definiu sua literatura como uma “contranarração” a discursos de ódio e à herança do colonialismo.
“A língua que destrói os corpos não é só a de quem atira, mas de quem escreve nos jornais dizendo que você é clandestino.”
Filha de pais nascidos na Somália, a autora italiana lança na festa literária de Paraty o romance “Adua” (ed. Nós), obra que toca nos temas da imigração e do racismo. Entusiasta da cultura brasileira, Scego aplaudiu quando uma mulher do público gritou “Marielle presente”, em homenagem à vereadora carioca assassinada.
“Muito obrigada por se lembrarem dela. Aquilo me chocou muito”, disse Scego, que participou de manifestações em Roma após a morte da política e ativista.
A trama de “Adua” entrelaça a história da personagem-título, mulher somali que emigrou para a Itália com sonhos de ser uma diva de cinema, e a de seu pai, que serviu aos fascistas italianos nos anos 1930. Adua acaba sendo vítima de violência sexual na Europa.
“Na Itália estamos vivendo um racismo feroz, que está destruindo literalmente os corpos. Ontem mesmo, um homem atirou contra um rapaz de Cabo Verde e disse que foi por engano. É engraçado que sempre que as pessoas estão com uma arma na mão há um negro por perto.”
Segundo a romancista, não se fala das chagas do colonialismo na Itália, que explorou territórios hoje pertencentes à Etiópia e à Somália no século passado.
“É importante [falar do colonialismo] para entender o que acontece no Mediterrâneo hoje porque o mar que cerca a Itália se tornou um cemitério”, disse Schego, fazendo referência à trajetória de muitos refugiados rumo à Europa.
A crise migratória também foi mote para o poeta Fabio Pusterla defender o que ele chamou de um “humanismo nômade”. O suíço, que escreve em italiano, lembrou que Dante Alighieri viveu parte da sua vida no exílio, vagando e pedindo esmola.
“Se Dante vivesse hoje, poderíamos encontrá-lo no norte do México”, disse Pusterla. “A história da poesia italiana, e da europeia, começa por um exílio.”
Autor do livro de poemas “Argéman” (publicado no Brasil pela Macondo), Pusterla é também tradutor do português para o italiano.
Comparando o poder transformador da poesia ao do romance, disse que esse último “é uma ferramenta de ação direta que modifica a consciência do leitor”. “A poesia não pode fazer a mesma coisa, mas pode questionar as palavras e o seu sentido.”
Ele citou caso de escritores que tinham relação ambígua com os idiomas em que escreviam, como o poeta Paul Celan (1920-1970), nascido na Romênia, que escrevia em alemão —idioma do povo que executou seus pais, judeus.
Nascido na multicultural Suíça, dona de quatro idiomas nacionais, Pusterla afirmou que o país “podia ser um modelo de convivência interessante” para a Europa.
No final da conferência, o poeta leu um de seus poemas, sobre animais enfileirados rumo a um matadouro. “Cada um de nós já viveu a experiência de cruzar com o olhar de um bicho e nisso revelar a presença do outro.”
Já Scego falou também de sua relação próxima com o Brasil. Ela entende português, ouve Chico Buarque, já leu Guimarães Rosa e lançou o livro “Caminhando Contra o Vento”, ensaio-depoimento sobre Caetano Veloso.
“Na Itália, eu era negra. E na Somália, uma italiana. Ficava confusa e descobri, graças à América Latina, que o mundo é mestiço”, afirmou a romancista. Quando bate uma tristeza, ela diz que ouve uma música de Caetano para alegrar: “Tigresa”.