Moro deveria ter feito quarentena ética, diz José Eduardo Cardozo

José Eduardo Cardozo diz ter encerrado a carreira política de 27 anos em 12 de maio de 2016, dia em que a presidente Dilma Rousseff foi afastada do cargo de presidente da República. Ele inclui nessa trajetória, além dos cargos no Legislativo, a passagem de cinco anos pelo Ministério da Justiça.

É um contraponto à ideia defendida pelo juiz federal Sergio Moro, que diz que quando assumir o Ministério da Justiça, em janeiro, estará exercendo um cargo técnico. “Não existe cargo de ministro que não seja político. Um ministro tem que guardar uma relação com o governo e sua visão política”, diz. 

Cardozo afirma que Moro, ao aceitar o convite do presidente eleito, Jair Bolsonaro, lança dúvidas sobre sua isenção na Lava Jato e diz que o juiz deveria ter se imposto uma “quarentena ética” antes de ir para o Executivo.

 

Como o senhor viu a nomeação do juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça? O convite eu acho que o próprio presidente eleito, Bolsonaro, já há muito tempo falava que algo poderia ocorrer. Eu me lembro que por volta de julho eu vi entrevistas do presidente eleito dizendo que iria nomear o Sergio Moro para a Suprema Corte. O que me espantou não foi o convite, foi a aceitação. Eu imagino, e me parece claro aos olhos de todos, que o juiz Sergio Moro tomou decisões que diretamente influenciaram o processo eleitoral.

Eu poderia até remontar a situações anteriores, como a divulgação dos áudios de uma conversa entre a presidente Dilma Rousseff e o presidente Lula, a prisão decretada por ele do candidato que se encontrava em primeiro lugar nas pesquisas (Lula) e mais recentemente, na véspera do primeiro turno, o juiz Moro utilizou um expediente jurídico para divulgar parcialmente a delação do ex-ministro (Antonio) Palocci, que já havia sido rejeitada na sua negociação pelo Ministério Público, que achava inconsistente e desacompanhada de provas. Aquilo atingia diretamente o partido político do presidente Lula e obviamente a candidatura de Fernando Haddad.

Mas o senhor vê relação entre essas decisões e a eleição? Diante disso tudo o que imaginar? O que eu imaginava? Que Moro, um defensor público da ética, defensor público da magistratura, ele sempre disse que não aceitaria nenhum cargo político porque isso poderia inclusive prejudicar o seu trabalho. Então eu imaginava: não, ele vai recusar.

Para minha surpresa, e fiquei estupefato, ele aceita. E não só desdizendo tudo aquilo que ele vinha dizendo antes, mas colocando evidência sobre uma acusação que já existia há muito tempo contra ele, de que ele tomava decisões arbitrárias e que tinha motivação política. Mais do que nunca agora isso precisa ser analisado e considerado.

Moro diz que o cargo é técnico, não político. Não existe cargo de ministro que não seja político. Um ministro tem que guardar uma relação com o governo e sua visão política. Ocupei como ministro da Justiça um cargo político, porque eu era totalmente fiel ao programa de governo de Dilma Rousseff. E todo ministro era assim. Não é possível imaginar transformar o Ministério da Justiça num cargo técnico. Ministro é governo e governo é político. Eu acho que se está tentando dourar uma pílula que não tem possibilidade de ser dourada.

Mas o senhor vê problema em ele assumir um cargo político? No fundo, ele está encontrando retoricamente uma maneira de dizer que o cargo é técnico para que ele possa se justificar diante daquilo que ele disse anteriormente. Agora, vamos ser sinceros? Ele não só disse isso como também o presidente disse que ele poderia ser nomeado para a Suprema Corte. Ora, depois disso ele tomou decisões que influenciaram o processo eleitoral. É uma situação que exigia dele, no mínimo, uma quarentena ética. Não é legal, porque não existe uma situação legal, mas deveria ter uma quarentena ética. Alguém que influencia o processo eleitoral tem que se considerar impedido de assumir cargos de livre nomeação de um governo que foi eleito a partir de decisões que ele tomou. Isso é questão de moralidade, questão de ética.

Ele participar do governo suscita dúvidas sobre sua isenção na Lava Jato? Eu diria que as dúvidas já estavam colocadas antes da aceitação. Há muitos juristas brasileiros e estrangeiros dizendo que há várias decisões que não se sustentavam e que qualificavam arbítrio. No entanto se faz isso. Por que se faz isso? Essa decisão dele agora coloca uma outra dimensão. Uma dimensão de, olha, quer dizer que existia um afinamento do juiz com aquele que seria eleito, com aquele que iria derrotar um certo campo ideológico e político? Havia um afinamento com aquele que derrotaria uma candidatura de centro-esquerda no Brasil? É isso? Não vão dizer que é arbitrário o que ele decidiu porque agora ele virou ministro. Essa discussão do arbítrio já existia muito antes e agora se coloca uma outra dimensão, que seria a finalidade, a razão de ser de possíveis arbítrios.

O juiz Moro se defende dizendo que a Lava Jato atingiu vários partidos, não só o PT. É impossível que as investigações de corrupção não atingissem um espectro amplo da política brasileira. A corrupção não nasceu agora no Brasil. Ela é estrutural. Ela é histórica. Agora, vamos olhar quantas prisões preventivas foram decretadas em relação a membros do PT durante tanto tempo, algumas delas, ao meu ver, sem justificativa, e outras que foram só recentemente decretadas em relação aos do PSDB.

Mas as decisões contra o PT foram arbitrárias e outras não? Eu acho que houve todo um conjunto de situações arbitrárias. Nem toda prisão é arbitrária. Houve prisões com provas, com indícios que justificam preventivas. Essas efetivamente devem ser decretadas. Agora, prisões sem provas para as pessoas delatarem? Prisões em várias situações que obviamente atingem o Estado de Direito. Situações desse tipo parece que foram muito mais reiteradas em relação a um campo político e particularmente ao PT. Eu não vou dizer que não se deve investigar o PT. Deve investigar todo mundo. Agora, houve uma construção de situações arbitrárias muito claramente colocadas contra um campo político. 

O juiz Moro diz que não haverá perseguições políticas. Eu acredito que o juiz Moro perde agora a condição de julgador e passa a ter o papel de ser fiscalizado e ser julgado. É diferente. Eu espero que ele fique atento, porque o ministro da Justiça é o responsável pela harmonia do Estado de Direito, a harmonia entre poderes e buscar o funcionamento desta forma de estado. O temor que eu tenho é que ele não tenha a dimensão da grandiosidade funcional do Ministério da Justiça. O ministério não pode se limitar a combater a corrupção, embora seja muito importante este combate. Eu temo que ele avalie que o Ministério da Justiça tenha que ser a extensão da Lava Jato. Mas a Lava Jato é importante, não? Ele tem que continuar combatendo a corrupção, mas esta é uma das atividades do Ministério da Justiça. Ele é muito maior. A questão da segurança pública, das fronteiras, do sistema prisional, do consumidor, da política indígena, a relação com o Ministério Público e Judiciário, a redução de acidentes nas estradas federais, ou seja, há muitas prioridades.

Moro e o presidente Bolsonaro parecem divergir em alguns assuntos. Pode haver choque entre eles? Eu temo que isso vá acontecer em algum momento. Embora eu discorde muito da atuação judicial do ministro Moro, eu acredito que ele tem visões mais acirradas das conquistas da civilização humana. Acho eu que ele não defenderá o enquadramento de movimentos sociais em organizações terroristas, acho eu que ele não vai defender que um policial possa matar livremente qualquer pessoa, sem ser em legítima defesa, sem qualquer punição. Acho que em muitas questões o que o Bolsonaro fala ao meu ver são sinais da barbárie, um retrocesso no processo civilizatório. Eu acho que o juiz Moro, pelo o que eu conheço, não defenderá. Isso vai tornar inexorável que ou o presidente se submeta ao ministro da Justiça ou o ministro da Justiça se submeta ao presidente.

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