Mortes indicam lado da violência na Nicarágua, diz órgão de direitos humanos

Integrante da missão internacional que visitou a Nicarágua na semana passada, o brasileiro Paulo Abrão, secretário-executivo da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), celebrou em entrevista à Folha a resolução aprovada nesta quarta-feira (18) pela OEA (Organização dos Estados Americanos), que condenou a violência do regime de Daniel Ortega no país.

Um dos que assinam o relatório que apontou a ocorrência de 212 mortes desde o início dos protestos contra o presidente, em abril, Abrão contestou o argumento do governo nicaraguense, que afirma estar vivendo um golpe de Estado promovido por grupos terroristas que espalham a violência contra a população.

“A proporção demonstra claramente de que lado está a violência”, disse. O número atual de vítimas é de 277, sendo 19 policiais, segundo a CIDH.

A CIDH continuará a monitorar a situação na Nicarágua e a informar a OEA sobre os desdobramentos da crise.

 

Folha - Como o sr. avalia a aprovação da resolução pela OEA ontem, que condenou a violência estatal na Nicarágua?

Paulo Abrão - É um respaldo ao trabalho da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, principalmente, uma pressão internacional para forçar o governo da Nicarágua a cessar a repressão e a diminuir os atos de violência. Foi uma resposta, dentro dos padrões dos organismos internacionais, bastante contundente e oportuna.

O representante da Nicarágua na OEA argumentou que há “grupos terroristas” promovendo “tortura e assassinatos” no país. É verdade?

O que efetivamente ocorre é que o país entrou num ambiente de violência generalizada, mas a responsabilidade primária dessa situação é das próprias autoridades estatais. Elas é que têm o dever de não reprimir o legítimo direito de manifestação e de liberdade de expressão, e de desmantelar esses grupos paramilitares e parapoliciais, que estão atuando de forma coordenada com a Polícia Nacional, para promover perseguição e, agora, abrir um processo de criminalização de todos aqueles que contestaram o governo.

O sr. se refere à lei que tipifica o crime de terrorismo.

Isso. É uma lei muito preocupante, porque possui alguns tipos penais muito genéricos e abertos, que permitem enquadrar as condutas dos manifestantes como atos terroristas. Nós visitamos prisões e conversamos com muitas das pessoas detidas, que denunciam que estão sendo acusadas por fatos que elas consideram falsos. Estão sofrendo maus-tratos, torturas.

Isso gera um alarme para toda a comunidade internacional de direitos humanos. Elas contam que foram detidas, inicialmente, pelos próprios grupos parapoliciais. São grupos terceiros, armados, pró-governo, que os entregavam à Polícia Nacional. E nós contatamos, efetivamente, que existe uma aquiescência e uma conivência da polícia oficial para com esses grupos armados milicianos.

E quanto à violência do outro lado? Pode-se dizer que este é um confronto entre dois grupos?

As estatísticas falam por si mesmas. São 277 pessoas falecidas, das quais 19 são policiais, que morreram em ações de confronto. A proporção demonstra claramente de que lado está a violência.

O embaixador da Nicarágua apresentou um vídeo durante a sessão de ontem na OEA, exibindo atos de violência dos manifestantes.

Isso faz parte de um reposicionamento do governo da Nicarágua, numa estratégia de acusar os manifestantes de terroristas e enquadrá-los em condutas que justificariam a violência [do governo]. Nós reconhecemos, durante nossa visita, a existência de grupos criminosos que se aproveitam da convulsão social para cometer atos de violência. Mas é um salto muito grande tentar, a partir desses casos isolados, caracterizar de maneira geral a resistência e os manifestantes do país como terroristas ou criminais.

O vídeo também acusa membros da Igreja Católica de participar dos atos de violência.

Os membros da igreja têm adotado uma postura de defesa intransigente dos manifestantes e estudantes, colocando suas próprias vidas em risco. Hoje, o governo da Nicarágua identifica a igreja como oposição política. Essa estigmatização dos atores religiosos é muito grave, porque aponta para um desprestígio da via do diálogo.

Os bispos, hoje, são os mediadores do Diálogo Nacional [iniciativa de negociações entre o governo e a oposição]. Desprestigiá-los significa enfraquecer as possibilidades concretas de uma solução pacífica, democrática e constitucional para a crise.

Quais são os últimos relatos do país? Houve uma escalada do confronto nos últimos dias?

Na nossa primeira visita, em maio, nós documentamos 76 pessoas mortas e detectamos práticas de prisões arbitrárias de maneira massiva, além de execuções extrajudiciais. Durante a finalização do nosso relatório, no dia 20 de junho, essa cifra já havia alcançado 212 pessoas. E agora, durante a nossa última visita, na semana passada, nós registramos 277 mortes, atualizadas até esse momento.

Isso demonstra claramente uma escalada alarmante da violência e a necessidade urgente de uma resposta da comunidade internacional.

A proximidade do dia de hoje, 19 de julho, que marca a derrubada do regime de Somoza em 1979, tem impacto nessa crise?

Há mais ou menos 15 dias, o governo disparou as chamadas “Operações Limpeza”, que são essas ações coordenadas entre a polícia e os parapoliciais para fazer a desmobilização das barricadas e atacar os bairros onde as pessoas estão resistindo. Essas ações têm sido feitas mediante um uso desproporcional da força, com armamentos de alto calibre, gerando novos mortos a cada dia.

Isso nos parece estar intimamente relacionado com o 19 de julho, porque demonstra uma intenção do governo de fazer uma retomada do controle do país por meio do uso da força, para que, nas comemorações da Revolução Sandinista, eles possam traduzir esse momento como uma vitória contra o golpe e contra os terroristas.

Qual a posição da CIDH em relação ao pleito para adiantar as eleições? É golpe, como afirma o governo?

A comissão entende que a agenda político-eleitoral deve ser discutida pela própria população nicaraguense. São eles que devem encontrar um caminho pacífico para resolver suas divergências. Mas é fato que a aliança cívica que agrega todos os movimentos sociais, desde os camponeses até os empresários, passando pelos estudantes, entende que não existem mais condições de legitimidade para a continuidade do atual governo.

Essa [a antecipação das eleições] é uma reivindicação que eles colocam como condição para resolver a crise atual. Definitivamente, não se trata de um golpe. Trata-se de uma insurreição civil contra os desmandos de um governo que envelheceu em seus ideais e que hoje pratica ações autoritárias que estão atentando aos direitos humanos.

A Venezuela foi um dos poucos países que demonstraram apoio à Nicarágua na OEA. É possível traçar um paralelo entre o que está acontecendo na Venezuela e o que pode acontecer na Nicarágua?

Uma diferença central é que, pelo menos oficialmente, as Forças Armadas da Nicarágua ainda não declararam a sua posição —diferentemente do que acontece na Venezuela, onde elas dão irrestrito apoio ao governo atual.

O importante nesse momento é que tenhamos condições de aprender com as lições do passado. Acho que já há uma novidade: o fato de que a própria OEA respondeu com mais velocidade ao que está acontecendo, com um chamado muito contundente de atenção ao país.

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