Negociar um pacote de reformas para construir o futuro
Em sua coluna semanal, Samuel Pessôa costuma dizer que o conflito distributivo (entre os vários grupos da sociedade) é a raiz das dificuldades atuais do Brasil.
Isso não ocorre apenas por causa da desorganização das contas fiscais e de o ajuste fiscal necessário requerer redução de gastos em cerca de 5% do PIB — equivalente a quase um quarto do orçamento federal.
O crescimento extremamente lento da produtividade impede o aumento sustentável dos salários e exacerba ainda mais o conflito distributivo.
Várias das principais reformas requeridas para o ajuste fiscal e para acelerar o crescimento da produtividade, pré-condições para o aumento sustentável da renda nos próximos anos, tendem a acentua-lo ainda mais.
Fazer as reformas necessárias é uma tarefa hercúlea: reformar a Previdência e torná-la financeiramente sustentável; controlar os salários do funcionalismo público federal e aproximá-los dos salários do setor privado; ajustar o sistema tributário para torná-lo mais simples e justo; repensar o eliminar os programas de apoio ao setor privado que não aumentam a produtividade e o emprego; reduzir a dualidade no setor financeiro e aumentar a concorrência para reduzir os spreads bancários.
Esses são apenas alguns exemplos do que será preciso enfrentar: matérias que envolvem escolhas intrinsecamente complexas, com efeitos importantes sobre o crescimento, mas impacto distributivos igualmente (se não mais) relevantes.
A redução das despesas deve decorrer, em sua maioria, da reforma da Previdência, da redução dos salários do funcionalismo público ou da redução dos subsídios ao setor privado? Quais devem ser as reduções nos setores de saúde e educação, além de outros itens orçamentários? Quanto deve ser angariado com o aumento dos impostos —e por quem? Quais medidas devem ser tomadas para impedir que os pobres e vulneráveis tenham que arcar com os custos do ajuste?
É muito difícil equilibrar todos os interesses relativos a cada reforma. Inevitavelmente, haverá ganhadores e perdedores —esses últimos, opostos à reforma. Normalmente, as perdas são concentradas e os benefícios são dispersos, o que dificulta ainda mais a economia política das grandes reformas.
O dilema básico é como viabilizar reformas que envolvem a troca no curto prazo de benefícios assegurados a um grupo relativamente pequeno (que portanto se beneficiam muito, tendo alto incentivo a se opor à mudança) por benefícios futuros e até certo ponto incertos para um grupo grande e difuso (e que portanto se beneficiam pouco, tendo baixo incentivo a apoiar a mudança) –ainda que esta troca possa deixar a todos melhores no futuro.
Fundamentalmente, existem duas opções. Uma opção é avançar com cada reforma individualmente e de forma unilateral em que a distribuição das perdas e ganhos é imposta. A outra opção é negociá-las como um conjunto de medidas em que gere uma distribuição de perdas e ganhos pactuada pelas partes.
É útil destacar alguns pontos. Primeiro, que os ganhos compartilhados para o país como um todo a partir das reformas são maiores do que as perdas para os pequenos grupos de interesses que atualmente se beneficiam desses privilégios. Segundo, cada uma dessas reformas envolve vencedores e perdedores diferentes.
Em princípio, esses dois pontos significam que é possível conceber um pacote de reformas em que todos os grupos da sociedade contribuam renunciando a alguns dos seus privilégios, e que as perdas para grupos específicos sejam mais do que compensadas pelos grandes benefícios advindos da adoção do pacote de reformas.
A ideia é facilitar uma negociação entre as várias partes sócias. Uma estratégia de reformas negociadas em torno de um pacote poderia afetar positivamente sua probabilidade de êxito e seu impacto esperado sobre o crescimento a distribuição de renda e a pobreza.
Isso não quer dizer que as reformas não possam ocorrer de maneira menos negociadas; apenas que o pacto em torno de um desenho especifico, caso possível, poderia entregar resultados significativamente melhores.
Tentativas de forçar essas reformas sem antes gerar um consenso amplo —algo que talvez seja, de fato, possível considerando-se os resultados das eleições— estarão fadadas a aprofundar ainda mais a segmentação do país e causar um período de tensões intensas e resultados imprevisíveis.
As reformas estruturais dos anos 1980 e 1990 no Brasil e no mundo e a transição para economias de mercado dos países do leste europeu são ilustrativas desse ponto.
Todas as escolhas que o Brasil possui são desafiadoras a seu modo. Em momentos como esse, outros países seguiram pelo caminho da negociação.
Um processo pautado na construção de um consenso amplo, com base em evidência empírica sólida, e uma liderança política que tenha credibilidade para liderar a construção coletiva de um projeto de país.
A eleição de um novo presidente e a grande renovação do Congresso Nacional criaram a legitimidade necessária —e o país acumulou, ao longo desses anos, estudos de qualidade sobre o que deve ser feito.
Caberá saber se a liderança política brasileira —oposição incluída— está disposta a trabalhar pela construção de tal consenso. Há importantes escolhas a serem feitas. Negociações sobre um pacote amplo de reformas leva à possibilidade de um futuro melhor, e de escolhas sobre como os ganhos e perdas serão distribuídos.
Essa coluna foi preparada em colaboração com o meu colega Paulo Correa, também economista do Banco Mundial e ex-Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.
Neste mês, retornarei a Washington para assumir o cargo de gerente da equipe global de comércio e integração regional, na sede do Banco Mundial. Infelizmente, isso significa que não poderei continuar a escrever minhas colunas quinzenais. Meu colega Rafael Muñoz, coordenador no Brasil do programa de macroeconomia, gestão fiscal e governança pública, assumirá esta coluna já em sua próxima edição. Estou confiante de que minha nova posição no Banco Mundial me permitirá manter valiosas contribuições ao pais, principalmente em temas abordados em minha última coluna. Agradeço a todos pela oportunidade.