'Não faço teatro para meu narcisismo', diz Antunes Filho em entrevista inédita
[RESUMO] Antunes Filho, um dos maiores nomes do teatro brasileiro, morto no dia 2 aos 89 anos, fala sobre autores e temas relacionados ao seu trabalho. A entrevista que se segue é um extrato de conversas mantidas com o autor entre 2005 e 2015.
Um dos maiores nomes do teatro brasileiro, Antunes Filho morreu no dia 2, aos 89 anos. Foi reconhecido, entre outras virtudes, por seu método de encenação e pela preparação dos atores. Seu teatro fala a língua do inconsciente coletivo. Era um antinaturalista, junguiano, taoísta.
Na entrevista que se segue —um extrato de conversas realizadas entre 2005 e 2015— ele comenta sobre Nelson Rodrigues, Carl Jung, Guimarães Rosa e Mário de Andrade.
A sua formação como diretor de teatro é baseada na experiência jungiana? Não foi; tornou-se. É preciso entender esse universo inconsciente do homem. A experiência particular conta muito. Foi através dele que eu comecei a trabalhar com novos valores, porque o teatro brasileiro estava confinado a Freud —e isso eu estou dizendo tendo como paradigma Nelson Rodrigues, que foi por onde se iniciou essa jornada de um novo teatro, de modernizar a consciência cultural do teatro brasileiro.
Nelson Rodrigues inaugura o teatro moderno brasileiro... Não somente inaugura, como ele é a maior expressão de toda a história do teatro brasileiro. Ele é um gênio. Realmente eu posso dizer que ele é um gênio, porque de maneira inconsciente ele mexeu com tudo isso. Se eu analiso a história dos gênios através da história do mundo, eu vejo que há poucas pessoas a quem posso dar o nome de gênio. Eu daria para o Leonardo da Vinci.
São poucos os gênios. Eu acho o Nelson Rodrigues, numa proporção de Terceiro Mundo, o grande gênio do teatro. Ele tinha coisas obsoletas, mas tinha também uma coisa inconsciente, aquilo que a gente chama de intuição, o outro sentido. Ele teve um outro lance, ele nem percebeu o que estava fazendo. Ele foi empurrado; foi um coice-de-mula no teatro brasileiro.
Aparentemente, para os bobalhões, Nelson Rodrigues é comédia de costumes. Porque ele tem situações bem cômicas do ridículo da nossa sociedade. Mas tudo é uma aparência, porque lá no fundo não tem uma cena que não seja baseada em arquétipos. Essa que foi a batalha que eu tive há duas décadas. É preciso analisar o Nelson Rodrigues através de uma ótica junguiana.
O teatro é um jogo mágico? O teatro é muito mágico, e a vida também é muito mágica. Mas os materialistas não percebem isso, não percebem que é uma celebração. Temos que perceber a magia e a celebração. Esse tipo de teatro é o que eu gosto, mas também tem o teatro que procura solucionar certas questões racionais. Por exemplo, a fome do Brasil, o problema da educação, da saúde, do saneamento básico.
Isso é necessário, mas quando o teatro vai discutir a questão social e vem com uma certa preparação daquilo que se vai dizer, de fazer as cabeças, eu odeio. Porque parece uma espécie de ditadura do autor, dos diretores, querendo me levar.
Eu quero democraticamente saber o que eu devo pensar. Eu quero pensar. Não quero que o diretor, nem os atores ou o autor pensem por mim. Eles podem me dar as perguntas, mas eu quero ter também a hora de falar. Eu quero ter direito à fala. Eu quero ter o direito à resposta também.
A memória emotiva do ator é o dado mais importante na composição do personagem? Você tem que usar a mente, não o cérebro. Através da memória você usa o seu cérebro, a sua lembrança, o seu computador, você se remete a uma situação xis da sua vida. E você se lembrando dessa situação xis, isso te dá uma emoção, então você a empresta para uma determinada situação da peça que você precisa resolver, e não consegue resolver como ator.
Eu acho formidável usar a memória emotiva porque as coisas se relacionam, é uma espécie de relação que o nosso cérebro é capaz de fazer, acionar nossa emoção através do racional.
A ilusão do ator é o que alimenta a criação do diretor de teatro e a expectativa do público? Eu sou taoista. E como bom taoista, eu adoro Shiva. Shiva é o senhor das ilusões. É o dançarino, criador de ilusões. Assim como Shiva cria as ilusões, nós estarmos aqui, eu como ator poderia estar aqui em outra situação, no ficcional. Então um grande ator tem a alma de Brahma e Shiva, pode colocar a plateia num outro jogo ilusório.
E é por isso que o teatro é maravilhoso, porque você pode ser mítico, você pode ser o mito Shiva. O grande ator cria novas ilusões, cria novos espaços, ele faz o que quiser da sua cabeça, assim como Shiva faz o que quer da minha cabeça.
Na hora em que você está ensaiando uma peça, há marcações rígidas do espaço a ser ocupado pelo ator, ou você ouve o que eles pensam? Não. O processo é dialético. As pessoas discutem, mas eu estou na contramão do teatro brasileiro. Porque para mim o primado do teatro é do ator. Eu não sei fazer nada, a não ser através do ator. O espetáculo é feito como? A forma como ele vai se manifestar é através do ator que eu vou saber.
Evidentemente que eu tenho ideias. Evidentemente eu também sinto coisas. E, evidentemente, todos os atores sentem e têm ideias. Mas o valor está sempre nessa outra força.
Eu não tenho nada quando eu vou fazer uma peça, eu não sei como eu vou fazer. Então eu tenho que preparar os atores através de laboratórios de ensaios para liberá-los, para ficarem destravados. Eu trabalho nisso. Depois, é através desses exercícios que eu vou encontrando os encaminhamentos, o processo. Ou seja, quem faz o espetáculo não sou eu. Quem faz o espetáculo é o processo.
Você é um diretor do teatro antinaturalista? Sim. Mas, às vezes, eu preciso usar uma certa ilusão. O máximo que eu vou é dentro do realismo. Às vezes, eu posso usar naturalismo, mas eu uso como um estilo. É uma coisa, então, de fora que eu coloco para poder realizar o contato com a plateia.
Nos atores, o que eu penso, ou pelo menos o que eu quero, é que nenhum seja naturalista. Mas isso não quer dizer que daqui a pouco eles não possam adotar o estilo naturalista. Eu gosto mais do termo realista, porque já é uma seleção do natural.
Qual a função do artista? A função do artista é uma função social. Eu não abro mão disso. Eu não faço teatro para mim, eu não faço teatro para me masturbar, eu não faço teatro para o meu egocentrismo, para o meu narcisismo. Eu faço teatro é para a comunidade, é para os meus irmãos. Porque somos um só.
Mas o artista não tem que necessariamente consertar o mundo. O artista tem por princípio uma certa ingenuidade. Ele não acha que pode consertar o mundo, mas ele acha que pode ser exemplar para o mundo e encaminhar as pessoas, ajudar as pessoas a ganharem uma consciência de toda essa coisa global que é o homem.
Mas os taoistas achavam isso uma besteira. Eles iam para a montanha porque achavam inútil falar. Ninguém quer ouvir nada. É difícil você modificar as coisas. Talvez seja inútil a gente falar. Eu acho que a gente tem que tentar melhorar não o mundo. A gente tem que melhorar o homem.
O homem é cósmico. A função dele é cósmica. Eu não sei se a função dele é melhorar, aprimorar as energias da natureza, de Deus. Eu não sei se o homem está aqui para melhorar Deus, aprimorar o Deus. Todos nós fazemos parte; nós somos parte desse grande Deus. Então nós estamos aqui para aprimorar essa energia que sempre existiu e que sempre existirá. Nada se perde, a energia não se perde, ela se transforma em outra coisa.
A vida sempre existiu, a energia sempre existiu e sempre existirá. Nós, como parte desse oceano energético, temos vivido como gotas, mas depois que se cai no mar passamos a ser todos o mar. Então nós temos que aprimorar esse mar. O mar primordial.
Você já montou “Grande Sertão: Veredas”. Qual é a essência do texto do Guimarães Rosa? Para Guimarães Rosa, o sertão está dentro da gente. É uma peregrinação que você faz em busca do autoconhecimento. Ele era enigmático, esotérico. Ele não falava sertão. Ele falava “sertal”.
Eu acho que o próprio Ribaldo, essa própria construção, essa sintaxe que ele colocou, é uma inovação. Eu acho ele extraordinário, genial. Existem poucos gênios no Brasil na área da literatura. Talvez só o Mário de Andrade e o Guimarães Rosa.
O mais genial em Mário é seu projeto sociológico? A ruptura que ele fez, sem cair naqueles fogos de artifício do Oswald de Andrade. Porque a turma gosta mais do Oswald, e muitos não sabem o que estão falando. Porque o Oswald era péssimo poeta, era uma porcaria de poeta. O que eram bons eram os manifestos dele que criaram rupturas. Mas não tem a grandeza do Mário de Andrade, a solidão de Mário de Andrade.
Mas Oswald tinha a alegria de viver, a sorte de ser poeta e a inquietação do inventor. Eu também. Se eu vivesse em Ipanema, eu talvez gostasse mais do Oswald de Andrade. Mas eu vivi em São Paulo, então eu tenho que gostar mais do Mário.
São ambos paulistas, mas estou dizendo que o Oswald é mais festivo. Eu não gosto dele. Eu gosto da coisa mais missionária, mais de pesquisa do Mário de Andrade.
Mas um se completa no outro. Completam-se. Eu acho que, inclusive como antagonista, o Oswald de Andrade foi ótimo. Ele estimulou demais. “Macunaíma” é todo baseado em Oswald de Andrade. Um herói sem caráter. Oswald é meio dadaísta. O “Macunaíma” é uma crítica a ele.
Pedro Maciel, escritor e artista visual, é autor dos romances "A Noite de um Iluminado" (Iluminuras) e "Retornar com os Pássaros", (LeYa), entre outros.