Notre-Dame de Paris: duas observações
1) Assisto ao incêndio da Notre-Dame de Paris pela TV –estranha coisa, essa, de ver a destruição em tempo real– e penso no saudoso senhor meu pai.
A primeira vez que visitei a catedral foi com ele e por causa dele, teria eu uns 15 anos. Hoje, quando usamos o adjetivo “medieval”, continuamos herdeiros dos filósofos iluministas, para quem a história parara depois das invasões bárbaras e só recomeçara no Renascimento.
(Ou, então, acreditamos em Quentin Tarantino, que reserva para os vilões dos seus filmes um tipo de tratamento com esse qualificativo.)
Nada mais falso, dizia o meu pai, um fanático pela Idade Média para quem a história parara, sim, mas depois do século 14. Se existe período que merece o nome de renascimento, acrescentava ele com devoção, esse período começa no ano mil e vai até à Peste Negra.
São três séculos gloriosos de civilização e arte, em que os homens se reproduzem como nunca; se alimentam como nunca; estudam como nunca; realizam trocas comerciais como nunca; constroem como nunca; e viajam como nunca. A prova?
Ali estava, apontava ele para a Notre-Dame. Longe iam os tempos em que as casas de culto eram pequenas, modestas, grosseiras. A catedral gótica era a expressão da riqueza de um tempo –riqueza material e, sobretudo, espiritual, com as paredes a elevarem-se para o céu como se fossem orações (cito de memória).
Para aquele homem, os medievais não eram fantasmas rústicos que viviam em outro planeta. Eram nossos contemporâneos, partilhando os desejos e os medos que é possível encontrar no homem do século 21.
Como professor que era, aconselhou-me bibliografia. Sobretudo Georges Duby, que eu li e agora reli. O homem medieval, escreveu o historiador francês, tinha medo da miséria, do outro, das epidemias, da violência e do além. E nós?
Nós não somos assim tão diferentes. Medo da miséria? Continua a ser uma angústia, mesmo ou sobretudo no meio de tanta afluência.
Medo do outro? Basta olhar para os nacionalismos agressivos, para quem os “estrangeiros” são os novos bárbaros.
Medo das epidemias? Nunca a saúde foi tão santificada como hoje.
Medo da violência? Uma preocupação que pode determinar resultados eleitorais.
Só não temos medo do além, talvez por não acreditarmos nele. Mas temos medo do aquém: o medo da morte nunca foi tão drástico.
A Notre-Dame de Paris não é uma relíquia do passado; é um monumento do presente onde podemos ver e projetar a nossa eterna humanidade.
2) Certa vez, contei a um grupo de amigos a minha visita à Capela Sistina. Falei do teto, daquele teto, que Michelangelo pintou em idade avançada. Alguém do grupo retorquiu: “E os pobres que passavam fome?”
É um comentário inteligente. Na cabeça do parceiro, se o papa não tivesse encomendado a obra a Michelangelo, ele teria comprado pão a todos os pobres de Roma, ou de Itália, ou da Europa.
Que a opção, no século 16, não fosse entre o teto ou os pobres mas entre o teto ou nada, eis uma hipótese que não perturbou aquela cabeça.
Agora, com o incêndio da Notre-Dame de Paris, esse argumento voltou a soar forte. Os milionários franceses já conseguiram juntar 900 milhões de euros para a reconstrução da catedral?
Hipocrisia, gritam os moralistas; eles deveriam gastar o dinheiro em ajuda humanitária, acrescentam. Uma vez mais, e na sabedoria dos moralistas, a opção não é entre a catedral ou nada; é entre a catedral ou uma ONG.
Se esse raciocínio fosse levado a sério, e aplicado retroativamente na história, não seria apenas o teto da Capela Sistina a desaparecer. Seria toda a arte ocidental, ou uma parte generosa dela, que sempre dependeu das boas graças dos mecenas.
De que nos servem as esculturas de Donatello se a família Médici não ajudava os pobres?
Que interessam as “Meninas” de Velázquez se Filipe 4º, rei de Espanha, não acabou com todos os miseráveis do país? (O país dele e, já agora, o país do lado, Portugal, então sob domínio filipino.)
E como tolerar Picasso ou Chagall se Peggy Gunggenheim não adotou todas as crianças órfãs do seu tempo?
É assim o mundo dos simples.