Notre-Dame e o fogo que parece ameaçar também a civilização ocidental
Como um edifício velho, erguido em pedra e madeira, é capaz alinhar a percepção de lideranças tão díspares como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu antecessor, o democrata Barack Obama? Ou o primeiro ministro da Espanha, Pedro Sánchez, o líder conservador da oposição espanhola, Pablo Casado, e um dos fundadores do Podemos, partido de extrema-esquerda daquele país, Pablo Iglesias?
As chamas que destruíram parte da catedral de Notre-Dame, no coração de Paris, na segunda-feira (15), foram ainda capazes de extrair do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, uma declaração polida e inspirada, na qual manifesta "profundo pesar pelo terrível incêndio que assola um dos maiores símbolos da cultura e da espiritualidade cristã e ocidental".
Quando ainda era candidato, ele se recusara a comentar o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro do ano passado, considerada a maior tragédia do patrimônio histórico e cultural do Brasil.
Na França, mesmo sem ter feito, felizmente, uma vítima sequer, o fogo que consumia o telhado da catedral mais famosa da Europa emocionou pessoas por todo o planeta. Simbolicamente, ver ruir a torre gótica que despontava no horizonte da capital francesa é espreitar a ruína que ameaça a própria noção de civilização ocidental.
Notre-Dame —"nossa dama", em homenagem a Virgem Maria— começou a ser construída em 1163 e se tornou peça de resistência da arquitetura medieval, palco de eventos políticos incontornáveis e matriz da cultura de massa, seja na literatura ou na produção audiovisual.
Foi o sucesso retumbante do romance "O Corcunda de Notre-Dame", de Victor Hugo (1802-1885), que mobilizou a população para salvar o monumento da demolição.
A obra, que denunciava as péssimas condições de conservação da catedral naquele momento, inspirou filmes, peças e desenhos animados, eternizando a figura de Quasímodo, o disforme tocador de sinos da catedral, e dando dimensão mítica à construção e a suas célebres gárgulas.
No campo político, a catedral foi local da coroação Henrique 6, da Inglaterra, como rei da França em 1431, e da sagração de Napoleão Bonaparte como imperador da França em 1804.
Entre as muitas relíquias religiosas de seu interior, estão réplica da coroa de espinhos que teria sido usada por Jesus Cristo antes de ser crucificado, além de um fragmento da própria cruz onde ele teria sido preso.
Mesmo com todo esse peso cultural, político, arquitetônico e religioso, houve quem celebrasse, nas redes sociais, a tragédia como espécie de vingança do destino contra um Estado que colonizou e oprimiu de forma violenta povos nos vários continentes, ainda que empunhasse, paradoxalmente, ideais de igualdade e fraternidade.
A denúncia, legítima, expõe uma cisão mais profunda no superficial lamento que uniu vozes ao redor do mundo.
Notre-Dame representa a civilização ocidental tanto quanto o poder da fé, da religião e da espiritualidade. Para alguns, é especialmente perturbador assistir à catedral em chamas num momento em valores fundantes da cultura ocidental estão em xeque, tais como as liberdades, os direitos humanos e a democracia.
Para outros, o que virava cinzas era um monumento da espiritualidade e do poderio cristãos --sentimento que parece consoante com a expressão do presidente brasileiro sobre o incêndio.
Foi justamente a simbologia do poder religioso que fez com que catedral parisiense fosse pilhada e transformada até mesmo em armazém de alimentos durante a Revolução Francesa (1789-1799).
A queda da torre de Notre-Dame parece evocar em nosso imaginário como o século 21 começou de maneira sinistra para o Ocidente: com os ataques às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001. Com isso, o incêndio no coração da Europa nos faz lembrar que a história não tem fim.