O comunismo agora é peça de museu
Na minha segunda ou terceira viagem a Cuba, quando a ilha já não era proibida para brasileiros, fui convidado para um almoço por Roberto Retamar, poeta e ensaísta que presidia a Casa das Américas.
É um interessante centro cultural, embora limitado aos artistas e intelectuais de esquerda, até por ser subordinado ao Ministério da Cultura de Cuba, uma ditadura que não dá o menor respiro a dissidências.
À época, o assunto de destaque, na órbita comunista, eram as tais “glasnost” (transparência) e “perestroika” (reestruturação) que Mikhail Gorbachev, então presidente soviético, estava começando a implementar.
Perguntei então a Retamar por que Cuba também não fazia as suas reestruturações. Não explicitei, mas o pano de fundo da pergunta era óbvio: se a União Soviética, cujos pesados subsídios garantiram a sobrevivência da revolução cubana, estava mudando, o lógico seria que a ilha seguisse sua tutora, econômica e ideológica.
A resposta de Retamar foi um primor de lógica imobilista: não valia a pena fazer mudanças porque os soviéticos haviam ensinado aos cubanos que o certo era o que se fazia até Gorbachev começar a mexer. “Quem nos garante", continuou, "que, dentro de 70 anos, eles não descobrirão que o velho sistema era o certo e, portanto, o novo está errado?"
Não sei se Retamar mudou de ideia (ele continua presidente da Casa das Américas, aos 88 anos), mas seus chefes mudaram. Tanto que acabam de divulgar linhas gerais de uma nova Constituição, que joga no lixo a palavra comunismo.
Desconfio que essa espécie de “perestroika” à cubana tem parentesco com a era Gorbachev: as reformas que ele implementou na União Soviética começaram a quebrar os cimentos do comunismo e, no limite, já com Boris Ieltsin, levaram à implosão do sistema.
Em Cuba, o sistema começou a mudar exatamente quando ruiu a União Soviética: já em 1992 —ainda sob o reinado do campeão mundial do imobilismo, um certo Fidel Castro— se aceitava o trabalho por conta própria —uma fresta no sistema de total propriedade estatal da economia.
Agora, o risco de que uma anemia econômica perene leve à breca o regime força-o a rever a Constituição de 1976, calcada na soviética, e que eliminara o conceito de propriedade privada. As novas regras constitucionalizam os chamados “lineamientos", o pacote de reforma que Raúl Castro, então ditador, adotou em 2011.
Já era um esforço para atualizar o modelo econômico e fortalecer o crescimento para a média de 4% ao ano. A realidade, no entanto, frustrou a expectativa, tanto que o crescimento para 2018 é estimado pelo próprio governo para apenas 2%.
Natural, portanto, que o pragmatismo substitua o imobilismo e se dê caráter constitucional ao “cuentapropismo".
Em 2017, já eram 567 mil os “cuentapropistas", correspondendo a 12% da força de trabalho. Com o impulso a esse tipo de negócio por sua inscrição na constituição, o plano é elevar a contribuição do setor para a economia para algo entre 40% e 45%.
O comunismo se torna, portanto, uma peça de museu. Não me venham dizer que a China e o Vietnã são países comunistas. São, sim, ditaduras, como em todos os países que adotaram o comunismo, mas ditaduras capitalistas. Até a Coreia do Norte está fazendo reformas capitalistas.
É claro que, em inúmeros países latino-americanos, Brasil inclusive, há quem associe comunismo com progressismo. É um conceito “fake": basta lembrar, como o fez o jornal português Expresso, na sua newsletter de domingo (22), que “um dos defeitos, talvez o maior de todos, [do regime cubano] era a intolerância à diferença".
Acrescenta: “Poucas coisas representaram tão bem [a intolerância] como as Unidades Militares de Ajuda à Produção, suavização para campos de trabalho forçado de 60 horas semanais a sete pesos por mês" (hoje, equivaleriam a R$ 1).
Para esses campos de trabalho forçado iam, entre outros perseguidos, “os homossexuais, que eram identificados nas ruas de Havana pelas calças apertadas, óculos escuros e sandálias", rememora o Expresso.
Quem defendeu o regime cubano até agora não tem o direito, portanto, de criticar Jair Bolsonaro. Ou será que ele e seus críticos vão criticar a nova Constituição que começa a reduzir o estigma ao homossexualismo?