O dólar, o mais triste tango argentino
Minha filha, que está em Buenos Aires, começa a quinta-feira (29) enviando uma mensagem de espanto: “Que país doido! O dólar chegou a 40 (pesos). Estava 32 na terça e, na quarta, depois do acordo com o FMI, subiu para 34".
Com aquele espírito bobo de velhinho que acha que já viu tudo na vida, respondo que era muito pior quando vivíamos em Buenos Aires (de 1981 a 1983). O dólar subia por minuto, não por dia.
A tréplica dela é definitiva: “Hoje está assim. Arrancou em 34 e em 45 minutos subiu a 40" (o “arrancou” é vício de linguagem de quem passou a adolescência em Buenos Aires e fala à perfeição não o espanhol, mas o portenho).
A informação me leva de volta à loucura que vivi no meu período de correspondente em Buenos Aires.
Esse fetiche com o dólar, nos argentinos, é uma patologia social. Claro que há fundadas razões econômicas para que a cotação da moeda norte-americana dispare. Estão todas elas na coluna desta sexta-feira (31) de meu guru em assuntos econômicos, Vinicius Torres Freire. Para resumir, “há um brutal desajuste entre entrada e saída de divisas".
É verdade, mas é igualmente verdade que, “na Argentina, o dólar tem uma representação mental", como disse a La Nación Gabriela Renault, decana da Faculdade de Psicologia e Psicopedagogia da Universidade de Salvador.
Suspeito que é mais que isso; é uma necessidade quase fisiológica de proteção.
No meu caso, funcionava assim: meu salário como correspondente era denominado em dólares, mas eu o retirava do banco em pesos. Cada dia do mês em que chegava o salário era um tormento.
Fila no banco para a retirada dos pesos (não havia nada nem remotamente parecido com internet banking) e a necessidade de trocar os pesos imediatamente por dólares, para perder menos a cada dia, já que a moeda argentina se desvalorizava por minuto.
Corria então para a rua San Martín, no centrão (primeira paralela ao calçadão chamado Florida, que os brasileiros frequentam muito), e ficava olhando as cotações nas vitrinas das casas de câmbio, para ver qual era a melhor para fazer a troca.
Nesta quinta-feira, La Nación reproduziu um monólogo na TV do cômico argentino Tato Bores (excelente) que eu até me lembrava vagamente de ter visto.
Era assim: “Você vai pela rua San Martín, onde estão as casas de câmbio, e todo o país está parado em frente às vitrinas. Há operários, pedreiros, peões, alfaiates, músicos, artistas, de tudo [podia ter acrescentado jornalistas estrangeiros]. Cada um está com um pacotinho de dinheiro e, assim que se mexe a cotação, entram todos em patota. Um diz ‘me dá três dólares’, outro diz 'me dá quatro dólares', outro diz 'me dá oito dólares’ e saem correndo. E vão a outra casa de câmbio. E antes de que a cotação se mexa, vendem os dólares. E assim passam o dia todo, vendendo e comprando. Comprando e vendendo. E quando chega a noite vão para casa, moídos, desfeitos, caem mortos em um sofá, contam o dinheiro, chamam a mulher e dizem: ‘Vieja, vieja’, venha. Hoje ganhei 14 mangos [gíria para dinheiro] e não fiz nada".
Não é ficção, não é piada, garanto. Vivi essa situação. Só não ganhei 14 “mangos” nem “mango” algum porque estava apenas me defendendo da desvalorização do peso, incontrolável.
É inacreditável que, quase 40 anos depois, a Argentina encene de novo essa tragédia.
Como é possível que um país que faz pouco mais de meio século era um dos mais ricos do mundo, que tinha um orçamento para a educação tão suculento que equivalia à soma dos orçamentos educativos do resto da América Latina, que gerou cinco prêmios Nobel (o Brasil, zero) possa naufragar uma e outra vez e voltar à tona cada vez mais exaurido?
No livro “O atroz encanto de ser argentino" [Bei Comunicação, 236 páginas, R$ 38,90], de 2001, o escritor Marcos Aguinis ensaia explicações, sob uma ótica liberal, que não é exatamente o esporte nacional argentino. Nele, Aguinis reproduz uma “frase brutal” do ator mexicano Mario Moreno (o Cantinflas): “A Argentina está composta por milhões de habitantes que querem afundá-la, mas não conseguem".
O carinho que tenho pelos argentinos me faz duvidar dessa avaliação, mas se essa loucura continuar, vou acabar acreditando —e, pior, vão acabar conseguindo afundar a Argentina.