O preço da democracia
Passei uns dias em Londres e convivi com estudantes russos. Falamos de jovens com 22 ou 23 anos, primorosamente educados, e que estudam ciência política na pós-graduação.
Mas o mais impressionante foi a ausência de política nos seus discursos, se entendermos por política o confronto de ideias sobre diferentes concepções de vida e de organização social.
Teoricamente, eles sabem que assim é. Mas quando o assunto se aproximava da política doméstica, a atitude era uniforme: nenhum deles estava particularmente preocupado com Vladimir Putin e o seu regime.
Se eu fosse paranoico, diria que o temor deles era que eu fosse um agente russo disfarçado, pronto para denunciar os críticos do Kremlin. Mas o desinteresse era genuíno. Motivos?
Os mais básicos --em vários sentidos da palavra. Nunca a classe média russa viveu tão bem. Haverá vantagens em ter uma democracia liberal com eleições livres, separação de poderes, direitos e garantias --e não ter dinheiro para pagar as contas do mês?
Boa pergunta. Uma pergunta que o Fundo Monetário Internacional reforçou. Leio no Wall Street Journal que a instituição fez as suas projeções econômicas para os próximos cinco anos.
Uma ideia perturbante: o total do PIB dos países considerados "não livres" pela Freedom House será superior, pela primeira vez na história, ao valor da riqueza gerada pelas democracias ocidentais.
Para darmos nomes aos bois: as economias combinadas dos Estados Unidos, da Alemanha, da França e do Japão vão perder para o time da China, da Rússia, da Turquia e da Arábia Saudita.
No fundo, o que o FMI prevê é que a "narrativa democrática" está em risco. Em que consiste essa narrativa?
Na ideia otimista de que existe uma relação profunda entre democracia e prosperidade: quanto mais democrático um país, mais próspero ele será.
Pois bem: a emergência do "autoritarismo capitalista" desautoriza essa ideia. É possível combinar um governo de ferro com riqueza geral. Ou não é?
A resposta mais sincera é que não sabemos. Embora eu duvide da validade da tese a longo prazo. O sucesso do "autoritarismo capitalista" é fenômeno recente. Ainda há um futuro inteiro para provar.
Seja como for, o desafio é real. E a inquietação também. Se a única coisa que garante a superioridade da democracia liberal sobre o "autoritarismo capitalista" são os bons resultados econômicos, o que acontece quando essa vantagem se evapora?
A resposta, óbvia, é que a democracia liberal não pode se definir apenas pela economia. Para os meus amigos russos, questões de dinheiro fechavam qualquer debate.
Acontece que não fecham --e Alexis de Tocqueville sabia disso. Quando viajou pela América no século 19 e escreveu o monumental "Da Democracia na América", o francês já tinha alertado: o materialismo em excesso destrói o horizonte espiritual do homem.
Sem cultivar certos valores imateriais --"les moeurs", como os chama Tocqueville-- o caminho está aberto para a servidão.
Sim, até podemos ter todos os confortos nessa servidão. Melhor ainda: o governo déspota tem todo o interesse em que nos percamos em prazeres efêmeros, como se fôssemos crianças com novos brinquedos, sempre afastadas da mesa dos adultos. Mas isso não altera o nosso estado servil.
Por outras palavras: no seu marketing existencial, as democracias liberais deram muita atenção a questões econômicas. Mas as questões fundamentais são outras.
Qual a vantagem em participar nos destinos da minha sociedade?
Por que motivo a autonomia é preferível à submissão?
Que importância eu dou à liberdade em todas as suas formas --de expressão, de imprensa, de associação etc.?
E por que motivo é tão importante ter a possibilidade de remover os maus políticos sem derramamento de sangue, para usar a conhecida formulação de Karl Popper?
No fundo, essas são as questões perenes que sustentam o ideal democrático. Os meus amigos russos eram incapazes de responder a elas. Pior: essas perguntas nem sequer lhes ocorriam. Como se fossem relíquias de um tempo arcaico.
Se o mesmo acontecer entre os democratas ocidentais --e uso a palavra democratas por gentileza-- não há nenhum motivo para que a democracia liberal sobreviva.
Será preciso lembrar que, em crentes, acabou a crença?