Pressa de Moro pode criar um estado policialesco, diz presidente da OAB-SP

Se não for discutido em profundidade, o anteprojeto de leis proposto pelo ministro Sergio Moro (Justiça) para combater o crime organizado e a corrupção pode criar um estado policialesco.

A avaliação é do novo presidente da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), Caio Augusto Silva dos Santos.

Segundo ele, a pressa do ministro em enviar o anteprojeto para o Congresso, nos cem primeiros dias do governo, atropela a discussão com os profissionais de direito e pode sepultar o que chama de conquistas civilizatórias, como o sigilo que vigora entre advogado e cliente.

“A OAB tem uma tradição histórica de defender conquistar civilizatórias. Quando se é movido pela emoção e comoção, aplaude-se até linchamento em praça pública”, afirmou Santos à Folha.

O novo presidente da seção paulista defende o aprofundamento da discussão para evitar o fim de garantias básicas. Para ele, a ausência de discussão pode provocar equívocos: “Porque o governo é passageiro e o cidadão é perene”.

 

Qual a avaliação que a OAB-SP faz do anteprojeto de leis do ministro da Justiça?  

Eu vejo com muita preocupação não só a questão do projeto do ministro mas de todo projeto que pretenda se antecipar a discussões que podem sempre melhorar esses projetos.

O que me preocupa é a urgência do encaminhamento sem que os atores principais, que vão trabalhar com essa legislação, possam discutir e compreender cada um dos passos. Minha avaliação é que a sociedade não discutiu o projeto.

O sr. acha que o projeto atropela os operadores do direito?  

É atropelo, sim. Devemos ter uma discussão pública de alto nível entre juízes, promotores, advogados, delegados, serventuários da Justiça, os operadores do direito, enfim.

Porque o calor das emoções pode às vezes implicar em equívocos, que não são dolosos. Discutir com a sociedade só tende a melhorar o projeto. A todos nós interessa combater a impunidade. Somos 300 mil advogados no Estado de São Paulo que denunciam mandos e desmandos, atendem à população carente.
Penso que as regras não podem ser traçadas com bases nas exceções. Isso tende a gerar injustiça.

A que exceção o sr. se refere?  

Estou me referindo à falsa ideia de que o endurecimento pura e simples de uma legislação penal implicará em melhoras dos índices de criminalidade. As experiências internacionais demonstram que o que melhora os índices de criminalidade é a eficiência e a presença do Estado, não o endurecimento de lei. Compreendo que há uma expectativa social pelo endurecimento, que é legítima.

O novo governo foi eleito com essa expectativa. Mas é importante discutir com os que trabalham com isso para encontrar um ponto comum que vai nos levar ao mesmo caminho: punir os que se desviam na medida e na severidade da lei, sem que a população mais pobre acabe prejudicada.

Houve uma grita geral contra o artigo que prevê a gravação de conversas de advogados com presos, feita com autorização judicial. Isso viola direitos dos advogados?  

Com toda certeza, mesmo com autorização judicial. Porque existem conquistas que são civilizatórias, a exemplo do sigilo da fonte para o jornalista. A fragilização de conquistas civilizatórias acaba retirando o limite que o Estado precisa ter.

E se o advogado for ligado a facção criminosa?   

É diferente quando um profissional da advocacia pratica crime. Mas não se pode querer estabelecer uma regra geral que rompe com a conquista civilizatória, que é o sigilo do cliente com o profissional de direito. Isso pode significar o cerceamento do direito de defesa de alguém. O advogado envolvido com crime é a absoluta exceção e já há mecanismos na lei para resolver esse problema. Transformar isso em regra é desnecessário. Com conquistas civilizatórias não se pode retroceder. O próximo passo é calar a imprensa. 

Também foi muito criticada a ideia de transação penal, a “plea bargain” americana, porque os advogados perderiam relevância. A OAB-SP apoia essas críticas?  

Essa é uma discussão importante, que devemos ouvir a advocacia. Faremos uma audiência pública sobre essa questão. De novo, estamos dando mais atenção à exceção do que à regra. A transação penal não retira atividade do advogado; ela mostra com muito mais clareza a necessidade do advogado.

O cidadão não pode ficar sob o jugo da ameaça do poder estatal, sob o jugo do medo. É a advocacia que estabelecerá o limite para se que sejam realizadas as transações. Algumas discussões prévias são necessárias. Em que momento deveria ocorrer a transação: antes ou depois da denúncia? 

Nos EUA, é antes da denúncia.  

Sim, mas os EUA tem um sistema completamente diferente do  Brasil. É um sistema baseado em precedentes, no “common law” em jurisprudência. A preocupação de muitos advogados é a seguinte: será que depois da denúncia não seria melhor porque você entende os limites da acusação? Será que, sem limites para a acusação, não estaríamos pressionando indevidamente a tudo e a todos? Olha o excesso de poder! Ninguém quer proteger o crime organizado. Queremos proteger o cidadão. Mas o Estado, a promotoria, a magistratura, a polícia precisam ter limites. O investigado precisa saber tudo que há contra ele nas acusações para decidir se negocia ou não. A OAB defende o combate à corrupção, a redução da criminalidade, mas precisamos encontrar um ponto que não implique no afastamento de conquistas civilizatórias. Porque o governo é passageiro e o cidadão é perene.

Muitos juristas consideram que o excludente de ilicitude funcionaria como uma licença para matar. Faz sentido?  

Penso que faz sentido. A questão da legítima defesa tem de ser analisada pelo Judiciário a partir de condições concretas para saber se estão presentes as premissas que permitem a legítima defesa ou se houve excessos. Quando você começa a dar exemplos na legislação de situações onde se legitima excessos, isso pode ser muito ruim. Os excessos têm de ser punidos sempre. Compreendo a legitimidade com que foi eleito o novo governo. Mas penso que precisamos discutir isso com muita calma. Penso que a intenção do governo não é legitimar excessos.

Não faz sentido livrar de investigação um agente de Estado que matou?  

Cabe ao Judiciário e aos órgãos de investigação apurar casos concretos. Temos que ter essa discussão. Se não o fizermos há o risco de criarmos um Estado policialesco. A OAB tem uma tradição histórica de defender conquistar civilizatórias. Quando se é movido pela emoção e comoção, aplaude-se até linchamento em praça pública. A maioria faz isso. O Estado não pode legitimar o linchamento em praça pública. É por isso que há os limites da lei.

Que tipo de endurecimento da lei a OAB-SP aceita?

Vamos imaginar um menor de idade que cometeu um homicídio. Hoje o menor de 18 anos está sujeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que coloca um limite temporal para as medidas sócio-educativas, a internação. Ela pode ficar até os 21 anos de idade. Quando você compara essa situação com um adulto, que pode ser condenado até a 30 anos de prisão, isso causa um sentimento ruim. Alguns defendem a redução da maioridade penal. Se abaixarmos a maioridade de 18 para 17 anos, será que não vamos estimular a prática de crimes por pessoas ainda mais jovens? Talvez o ponto de entendimento seja aumentar o tempo da pena do menor. Essa discussão precisa ser feita. Não podemos misturar nas prisões jovens com pessoas mais experientes com o crime. Vejo como um equívoco a diminuição da maioridade penal. Mas vejo como um acerto discutir o equilíbrio da pena.

O anteprojeto de Moro amplia o conceito de legítima defesa com figuras pouco concretas, como “surpresa, medo ou violenta emoção”. É necessário amplificar esse conceito?  

Os adjetivos utilizados são subjetivos e vagos. Medo e surpresa não podem justificar o crime para um profissional da polícia. Cabe aos juízes dizer se houve legítima defesa. Não se pode retirar do Poder Judiciário a análise de situações concretas. Isso pode ser interpretado como licença e aumento de limites.

Há uma convergência na avaliação de que o projeto aumentá a população carcerária. Faz sentido prender mais?  

Não. O que faz sentido é prender com qualidade, o que não ocorre. É uma discussão que precisamos enfrentar. Existem situações que merecem outro tipo de punição, as penas alternativas. Talvez os crimes contra o patrimônio deviam ser punidos com elementos que envolvam patrimônio: ressarcimento, indenização, multa. Teria de haver uma política que não pregue o encarceramento em massa, mas a prisão com mais qualidade.

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