Procuradores orientam Incra a anular memorando que rompeu com MST
O Ministério Público Federal recomendou ao ouvidor nacional agrário do Incra, o coronel da reserva do Exército João Miguel Maia de Sousa, que anule o memorando da última quinta-feira (21) pelo qual orientou os chefes do órgão a não receber representantes de entidades “que não possuem personalidade jurídica”, como é o caso do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), e “invasores de terras”.
Os procuradores afirmam que a orientação contém “ilegalidades e inconstitucionalidades”.
No memorando, revelado pela Folha na sexta-feira (22), o ouvidor disse agir “em consonância com as diretrizes emanadas pela presidência do Incra”, ocupada pelo general da reserva do Exército João Carlos de Jesus Corrêa.
Na prática, o documento formalizou o rompimento de diálogo com o MST. Durante a campanha eleitoral à Presidência, o então candidato Jair Bolsonaro (PSL-RJ) disse que atos do MST deveriam ser classificados como terrorismo.
No ofício encaminhado ao Incra nesta segunda-feira (25), um grupo de procuradores da República recomendou ao ouvidor tornar sem efeito o ofício que havia sido dirigido a todas as superintendências do Incra no país e orientá-los a proceder “o atendimento amplo e integral de todos os usuários do serviço público, sem discriminação de qualquer natureza, o que deve abranger movimentos sociais e quaisquer entidades”.
“Advirta-se que a presente recomendação deve ser cumprida a partir de seu recebimento, sob pena das ações judiciais cabíveis, sem prejuízo da apuração da responsabilidade civil e criminal individual de agentes públicos”, diz o documento encaminhado pela PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que funciona na PGR (Procuradoria Geral da República), em Brasília.
A peça é subscrita pela subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, que ocupa a PFDC, e os procuradores do Grupo de Trabalho Reforma Agrária Julio José Araujo Junior, Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, Ivan Claudio Marx, Michele Diz y Gil Corbi e Raphael Luis Pereira Bevilacqua.
“As orientações adotam posição de acirramento de tensões sociais e conflitos no campo, em contrariedade ao papel mediador e de busca de pacificação, prevenção e resolução de tais antagonismos conferido à Ouvidoria Nacional Agrária pelo ordenamento jurídico”, diz a peça do MPF dirigida ao Incra.
Os procuradores mencionam o artigo 7º do decreto 8955/2017, que estabelece, segundo o MPF, o papel da Ouvidoria como “espaço administrativo de interlocução, mediação e resolução de conflitos sociais no campo”.
Os membros do MPF citaram 26 pontos a serem considerados para a revogação do memorando.
A respeito de o MST não ter “personalidade jurídica”, pois o grupo não dispõe de número de CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), os procuradores afirmam que “não há, seja no direito interno, seja no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, norma que exija a formalização de coletivos para habilitá-lo à luta por direitos, inclusive porque toda concepção associativa regula-se pela ideia central de ausência de ingerência estatal”.
Os procuradores mencionam “o mais importante precedente sobre o tema”, um caso que tratou de interceptação telefônica de duas organizações sociais “ligadas ao MST na luta pela reforma agrária no país e sua posterior divulgação na imprensa”.
O caso, segundo a PFDC, tramitou no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada na Costa Rica, que concluiu pela “ofensa ao direito de reunião ou associação, com previsão no artigo 16 da Convenção Americana de Direitos Humanos (‘Pacto de San José de Costa Rica’)”.
“Os potenciais beneficiários da política nacional de reforma agrária não podem ser prejudicados ou discriminados por cumprirem dois desígnios constitucionais, quais sejam, buscar a reforma agrária e se associarem livremente para tal fim”, diz a peça dos procuradores da República.
A PFDC afirma ainda que “a ocupação de imóveis que não cumprem a função social da propriedade situa-se dentro das liberdades de manifestação, protesto e expressão” e que apenas uma lei “pode criar obrigação e/ou extinguir direitos tanto na seara cível quanto na penal ou administrativa”.
Procurado nesta segunda-feira, o Incra não se manifestou até a publicação deste texto. Na semana passada, a assessoria do órgão encaminhou uma resposta do próprio ouvidor agrário.
Segundo o coronel, "o interessado" que procura o Incra "só representa a si mesmo, desde que devidamente identificado, na defesa de seus interesses, a não ser que possua procuração para fazê-lo em nome de outrem". Os interessados, segundo o ouvidor, "poderão ser recebidos e ouvidos, conforme previsão contida na legislação específica".
O ouvidor afirmou ainda, por meio da assessoria de comunicação do Incra, que "pretende regulamentar, no mais curto prazo, os procedimentos de audiência concedidas a particulares por agentes públicos em exercício na autarquia".
Por fim, o ouvidor afirmou que "a manifestação do interesse do cidadão é livre e deve ser feita pelos canais que os órgãos públicos mantêm para a comunicação direta e a manutenção do diálogo com a população".
As mesmas expressões encaminhadas pelo ouvidor na resposta à Folha constam de um segundo memorando que foi distribuído às superintendências na sexta-feira (22), após a reportagem que revelou o primeiro memorando.
Para o grupo de procuradores da República, o segundo memorando “em nada altera a orientação anterior, reforçando, ao contrário, as ilegalidades e inconstitucionalidades aqui ressaltadas [na recomendação encaminhada ao Incra]”.
Também procurado pela Folha desde sexta-feira, o presidente do Incra, o general Jesus Corrêa, não se manifestou até o momento sobre o assunto.