Proposta de cortar verba de cursos de humanas tem pouco peso prático

A ideia do governo Jair Bolsonaro (PSL) de reduzir investimentos em filosofia e sociologia tem um peso mais ideológico do que prático. O número de alunos de graduação desses cursos representa 1% do total nas universidades federais, número similar ao da pós-graduação.

O presidente falou do assunto na sexta (26) em publicação nas redes sociais, retomando a ideia exposta pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, na quinta (25). Para Bolsonaro, o objetivo em estudo é focar áreas que gerem "retorno imediato ao contribuinte".

"O ministro da Educação, Abraham Weintraub, estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados", escreveu Bolsonaro.

O discurso de Bolsonaro sobre educação é marcado pela a perseguição a uma suposta doutrinação de esquerda, que seria predominante nas universidades, sobretudo em humanas. A luta contra o chamado marxismo cultural é a espinha ideológica do governo.

Ainda não há detalhes sobre como o governo pretende colocar em prática esse plano, que é criticado por especialistas. Reduzir matrículas nas federais esbarra na autonomia das universidades, garantida pela Constituição. Uma das alternativas, por outro lado, seria estrangular a oferta de bolsas de pesquisa.

Questionado, o MEC defendeu que vai estudar a priorização de recursos para melhor atender às demandas da população. "Nesse sentido, não há que se falar em perdas ou ganhos, trata-se, apenas, de readequação à realidade do país", diz nota da pasta.

As áreas de sociologia e filosofia, entretanto, não têm a dimensão que Bolsonaro sugere. Dos 1.283.431 alunos de graduação das federais, 25.904 estão em cursos de filosofia ou sociologia —1% do total. Os dados são do Censo da Educação Superior de 2017.

As duas áreas registram 66 programas de mestrado e doutorado nas federais, ou 2,5% do total de 2.509 programas nessas instituições, segundo dados da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), ligada ao ministério.

O cenário é o mesmo no que se refere a pagamento de bolsas. Somente 1,4% dos gastos do CNPq, agência federal de fomento à pesquisa, são direcionados à ciências sociais. Para filosofia, esse percentual é de 0,7%. As bolsas pagas nessas áreas, em 2017, somam R$ 19,7 milhões, diante de um total de R$ 944 milhões.
 

Bolsonaro apontou como áreas mais competitivas, e que deveriam ser priorizadas, medicina, medicina veterinária e engenharia. As engenharias concentram mais de 20% do total de gastos com bolsas. Medicina tem 3% e medicina veterinária, 2%, segundo os dados do CNPq de 2017, que consideram todas as instituições de ensino superior, incluindo bolsas de iniciação científica.

O professor de física da Unicamp Leandro Tessler critica a falta de embasamento da proposta. "Nenhum lugar do mundo tem universidade de prestígio sem humanas, filosofia, sociologia, história. Isso é muito importante para saber que nazismo não foi de esquerda, por exemplo", diz. 
 

Bolsonaro faz ainda menção de forma genérica à área de humanas, que agrupa outros conhecimentos, como educação e psicologia.

Segundo a Capes, 14,9% das bolsas atuais são desse grupo e outros 8,8% de ciências sociais aplicadas, como economia. A área de saúde responde por 14,3% e biológicas, 10,3%.

Para Simon Schwartzman, estudioso de ensino superior, o presidente parece falar mais sobre ciências sociais e humanas de forma genérica, o que, diz, é um problema mais grave. "A pesquisa social no Brasil lida com questões muito fundamentais, como pobreza, desigualdade, emprego, violência, saúde pública, demografia. Todos esses temas são das ciências sociais", diz. 

Segundo ele, é um equívoco achar que as ciências sociais não têm um papel importante na pesquisa. "Como não temos muita tecnologia industrial, formamos engenheiros e não temos emprego para eles."
Schwartzman ressalta que a discussão sobre priorizar investimentos para áreas que por ventura gerem inovações inclui outras dimensões, como o lado econômico, a baixa competitividade da indústria e os termos legais que regem as universidades. 

Em uma rede social, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), sociólogo e professor aposentado da faculdade de ciências sociais da USP, criticou a proposta.

"Preocupa o rumo do governo. As cascas de banana postas por sua gente mesmo causam mais estragos do que as oposições. Atua destoando: quer reduzir gastos com filosofia e ciências sociais, como se por aí se resolvesse o que de fato conta para o povo: renda e emprego. Até quando?"

Rodrigo Jungmann, professor de filosofia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), simpático ao governo Bolsonaro, também considera a medida um equívoco. "A direita não deve abolir cursos de humanas. Deve entrar neles, assim como no direito, na imprensa e todas as demais instâncias de formação e circulação de ideias", disse à Folha.

Procurada, a Andifes (associação dos reitores das federais) informou que tem dedicado todas as atenções ao orçamento das instituições.

O CNPq, ligado ao Ministério da Ciência, afirmou que não recebeu orientação para mudar critérios para concessão de apoio à pesquisa. Também não houve novas orientações para a Capes, mas o órgão ressaltou em nota que "segue as diretrizes e políticas"do MEC.

Entidades criticaram o plano. "O ministro e o presidente ignoram a natureza dos conhecimentos da área de humanidades e exibem uma visão tacanha de formação ao supor que enfermeiros, médicos veterinários, engenheiros e médicos não tenham de aprender sobre seu próprio contexto social nem sobre ética", diz a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia.

Em nota conjunta, as associações nacionais de antropologia, sociologia, ciência política e de pesquisa em ciências sociais expuseram indignação. 

"É tão equivocado e enganoso avaliar as diferentes disciplinas e a reflexão filosófica pela sua aplicabilidade imediata quanto desconhecer a importância histórica das ciências sociais e das ciências sociais aplicadas no desenvolvimento de diferentes tecnologias voltadas à resolução de graves problemas da sociedade."

Recentemente, Bolsonaro declarou nas redes sociais que "poucas universidades têm pesquisa, e, dessas poucas, a grande parte está na iniciativa privada", o que não é verdade.

Colaborou Fábio Zanini​

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