Rivais duelam 80 anos após decisão que teria mudado com VAR
Corinthians e São Paulo começarão a decidir no domingo o primeiro Campeonato Paulista com a presença do VAR (árbitro assistente de vídeo, na sigla em inglês). Existisse há 80 anos o recurso tecnológico, outro título estadual disputado entre os rivais poderia ter um dono diferente.
Como não havia juiz de vídeo ou mesmo vídeo naquele 25 de abril de 1939 no Parque São Jorge, a pressão dos tricolores no apitador Thomaz dos Reis Cardoso de Almeida não funcionou. E o gol de Carlito — anotado com a mão de acordo até com boa parte dos alvinegros que estavam no estádio — acabou dando à formação preta e branca a taça da competição, válida pelo ano anterior.
"Foi a mais bela cabeçada da minha vida", divertiu-se o Turco, como também era chamado o meia-esquerda que definiu o empate por 1 a 1. O placar na última rodada do torneio de pontos corridos foi suficiente para os comandados de Del Debbio, que chegaram ao jogo derradeiro com dois de vantagem sobre o vice-líder, o próprio São Paulo, dirigido por Vicente Feola.
No lance em questão, o ponta-direita Lopes fez um cruzamento rebatido pelo goleiro Pedrosa (o Roberto Gomes que seria presidente tricolor e viraria nome de praça e de campeonato). Com o arqueiro caído, Brandão colocou a bola de novo na área, e Carlito aproveitou a chance.
"O juiz consigna o tento e o bando tricolor em peso protesta. Entram em campo mais de cincoenta paredros e a partida fica interrompida por mais de 4 minutos, recomeçando com a bola no centro, pois o árbitro mantém sua decisão", narrou a Folha da Manhã do dia seguinte, com a linguagem própria da época.
A publicação chegou a citar o joelho como a parte do corpo usada por Carlito no lance. Mas reconheceu que Cardoso de Almeida, embora "imparcial e de boa vontade, procurando sempre acertar, deixou dúvida quanto ao tento do Corinthians".
Não parece ter havido essa dúvida entre os torcedores. Repetindo versos que eram comuns para celebrar as conquistas do basquete alvinegro, campeão paulista de 1936, eles deixaram o estádio cantando: "É com o pé, é com a mão, o Corinthians é campeão!".
Mesmo o corintianíssimo Lourenço Diaféria, que contou apaixonadamente a história de seu clube no livro "Coração Corinthiano", não fez questão de esconder a malandragem de Carlito. O relato da jogada tem os arroubos próprios de seu estilo, porém procura ser claro.
"O árbitro aponta o meio do gramado. Foi? Não foi? É? Não é? Carlito, camisa 10, está sendo sufocado pelos abraços. O preto Brandão brilha como uma lâmina de platina. Barcheta salta, salta, salta de alegria. Pedrosa meneia a cabeça... Ele sabe que não foi de cabeça. Ele sabe. Carlito também sabe", escreveu o cronista.
Diaféria reproduziu ainda as palavras que teriam sido ditas pelo torcedor Oswaldo Casella, que estava atrás do gol do São Paulo. "Meu filho, vem cá. Eu vou contar a verdade, a verdade que eu vi. Foi com a mão. Só com a pontinha da mão. Mas foi um gol lindo!"
Assim, de mão, o Corinthians fechou uma conquista que abriu com Umbigo, nome do autor dos dois gols primeiros tentos alvinegros no Paulista de 1938. A disputa se iniciou em março e, com longa paralisação ligada à Copa do Mundo, só terminou em abril de 1939.
O próprio jogo decisivo se arrastou por mais de 48 horas. Começou no domingo e foi interrompido por um temporal aos 21 minutos do primeiro tempo, quando o São Paulo vencia por 1 a 0 — resultado que igualaria a pontuação dos rivais e forçaria um jogo de desempate.
Aquela "gente com galocha, paletó de gola levantada, suéter de lã, chapéu Ramenzoni na cabeça, guarda-chuva preto, capa de gabardine", como descreveu Diaféria, teve de ir embora e voltar ao Parque São Jorge na terça.
Quando retornou, viu um duelo truncado e violento, segundo o relato da Folha da Manhã. Brigar pelo título sob críticas, como mostrou a consulta ao acervo da Folha, não é uma inovação implantada por Fábio Carille no Corinthians.
"O prélio esteve simplesmente medíocre e irritou bastante", expôs o jornal, acrescentando: "Para os não fanáticos, deixou muito a desejar". Mas os alvinegros, com ou sem chapéu Ramenzoni, já eram famosos por sua loucura.
"Dizem que alguns corintianos mais exaltados teriam atolado na lama o futuro general Porphyrio da Paz", afirmou o historiador Celso Unzelte, referindo-se ao torcedor-símbolo que compôs o hino do São Paulo e é um de seus fundadores.
Não adiantaram os protestos de Porphyrio, que viria a ser prefeito da capital paulista e governador interino do estado. Também não adiantou o recurso da diretoria tricolor, que ainda tentou recuperar os pontos perdidos em uma derrota por 5 a 0 para a Portuguesa e estender a disputa.
A festa era mesmo daqueles que vibraram com o tento de Carlito, aos 20 minutos do segundo tempo. Um lance que manteve o Corinthians invicto até o fim do Paulista e assegurou o bicampeonato.
O meia-esquerda não participou do tri, obtido ainda em 1939, porém encerrou sua passagem pelo clube com expressivos cem jogos e outros 38 gols. Nenhum tão marcante quanto sua “mais bela cabeçada”.