Roberto Simon: O precedente da Guatemala

Enfim, a visita à Terra Santa. Ao lado do premiê Binyamin Netanyahu, o presidente dessa auspiciosa nação latino-americana anuncia a transferência de sua embaixada de Tel Aviv a Jerusalém. Trata-se, afinal, de um compromisso de campanha, ganha com o voto evangélico e sobre os escombros do establishment político, arrasado pela maior operação anticorrupção da história nacional.

Refiro-me, acima, ao presidente Jimmy Morales da Guatemala —o único (por enquanto) a seguir os EUA de Donald Trump e reconhecer Jerusalém como capital do Estado Judeu.

O Paraguai prometera fazer o mesmo, mas, logo depois, recuou. O disse-desdisse conseguiu o feito raro de unir palestinos e israelenses contra Assunção.

A Austrália também indicara que acompanharia Trump. Porém, ao ver o preço na conta, emendou: “eventualmente” levaria a missão diplomática a Jerusalém Ocidental —que, pelo traçado da fronteira pré-1967, já é território israelense inconteste.

O precedente guatemalteco pode ajudar a iluminar o debate no Brasil sobre o que significaria, na prática, o reconhecimento de Jerusalém. Seria uma decisão custosa, a nos assombrar muito além do mandato de Jair Bolsonaro. Mas os principais argumentos usados contra a ideia —sobretudo, a suposta ausência de ganhos imediatos e o “inevitável” revés comercial— provavelmente estão errados.

Com o anúncio em Jerusalém, Morales ganhou um mimo de Trump: a súbita mudança de posição dos EUA frente à Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (Cicig), da ONU. Criada em 2006, a Cicig é um caso inédito em que um país solicitou ajuda externa para lutar contra corrupção sistêmica. A comissão patrocinou mais de dez grandes operações, incluindo a que levou à renúncia e prisão do então presidente Otto Pérez Molina.

Ex-humorista, Morales prometia “limpar” a política e exaltava a Cicig. Até que a comissão passou a investigá-lo por caixa dois. Em janeiro, ele denunciou o tratado com a ONU e mandou expulsar os investigadores.

O ataque à Cicig seria impensável sem a guinada de Trump —além de enorme influência sobre o país, Washington era o garante e maior financiador da iniciativa na ONU. Mas, com uma embaixada guatemalteca em Jerusalém, os americanos silenciaram.

Ao mesmo tempo, ameaças de boicote comercial do mundo islâmico à Guatemala nunca foram levadas adiante. O país detém 60% da produção mundial de cardamomo, e o Oriente Médio leva a maior parte das exportações.

Entre a administração Trump e conservadores americanos, Jerusalém reforçaria as credenciais de Bolsonaro como aliado estratégico. E um duro revés comercial é improvável: a questão palestina é hoje secundária a países como Egito e Arábia Saudita, e indisposições poderiam ser compensadas, por exemplo, com apoio bolsonarista contra o Irã.

Mas o Brasil —uma democracia continental, entre as dez economias mundiais— não tem as ambições globais da Guatemala. Nesse sentido, os riscos são altos e de longo prazo. Eles incluem nossa perda de relevância como grande articulador em âmbito multilateral. E, numa perspectiva histórica, estar entre os grandes que golpearam a solução de dois Estados enquanto ela já padecia em estado terminal. Levaria tempo para reverter esses danos.

O analista Roberto Simon, 34, passa a escrever a partir deste sábado (30) uma coluna quinzenal na Folha, na qual priorizará a política externa brasileira e a América Latina. Simon é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela UNESP. Atualmente, escreve um livro sobre a participação do Brasil no golpe que levou o general Augusto Pinochet ao poder no Chile em 1973.
 

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