Temporada final de 'House of Cards' trai verve política e vira suspense ralo
Deixou marcas nesta última temporada a purga promovida em "House of Cards" pelo movimento #MeToo de combate à agressão sexual, e não só pelo apagamento do ator Kevin Spacey —protagonista tanto da série quanto do escândalo em Holywood.
A série chega ao ar nesta sexta (2) sem o ator, devidamente substituído por um elenco excelente encabeçado de forma competente pela até então coprotagonista Robin Wright, a primeira-dama convertida em vice-presidente e agora presidente dos EUA.
Se a presença de Spacey não faz tanta falta, a de seu personagem, o presidente Frank Underwood, deixa um rombo.
Sem ele, o roteiro dá voltas como uma galinha descabeçada que não nota sua morte.
Da intrigante trajetória de um casal calculista aferrado ao poder, passa a um thriller policial genérico. Com dois novos coadjuvantes de peso, Diane Lane ("Infiel") e Greg Kinnear ("Melhor Impossível") como irmãos milionários com interesses escusos na Presidência, o enredo segue o registro de comédia de erros, com culpas distribuídas, portas sendo abertas a toda hora e telefonemas com explicações para empurrar a trama.
É verdade que a Netflix não cedeu aos jornalistas todos os dez episódios da temporada derradeira, então é possível que a metade final premie quem acalentou esperança de ver a série antes genial se redimir. Mas nada indica que o nível volte ao da espetacular temporada de estreia.
Agora temos Claire Underwood no Salão Oval, secundada pelo estrategista Mark (Campbell Scott, ótimo) como vice. Ao contrário do que que ocorria até então, ela não é mais amada pelo eleitorado: ameaças e críticas abundam.
Alçada ao poder, Claire se torna vulnerável. E, num rescaldo do #MeToo, rodeia-se de mulheres para se perpetuar na Casa Branca.
Como se já não tivesse sido bizarro colocar o chatíssimo escritor/amante Tom Yates (Paul Sparks) para morar na residência oficial do presidente, agora é a vez da lobista internacional Jane (Patricia Clarkson) fazer as vezes de ama de companhia. Felizmente para o espectador, Clarkson e sua personagem são infinitamente melhores que Yates/Sparks.
A elas se une Annette Shepherd (Lane), amiga de adolescência de Claire e irmã de Bill Shepherd (Kinnear), um empresário inescrupuloso cujo interesse na presidência transcende a política. E dá-lhe flashbacks da pequena Claire fumando e sofrendo bullying aos seis anos no Texas (o inevitável clichê da mulher vingativa e amargurada não foi, afinal, varrido pelo #MeToo).
Doug Stamper (Michael Kelly), o melhor personagem, foi confinado a ligações telefônicas e sessões de terapia após assumir a lista de crimes do ex-patrão, e a imprensa incansável continua personificada pela figura do editor Tom Hammerschmidt (Boris McGiver), disposto a descobrir que fim levou Frank.
Passa bem como diversão ligeira, mas, com a política do mundo real assumindo contornos tão fantásticos e assustadores, "House of Cards" perdeu o frescor. Que vá em paz.