Top model troca passarelas por crachá de médica em hospital do SUS
A loura alta e magra de olhos verdes caminha a passos largos pelos corredores do Pronto Socorro de cirurgia clínica do Hospital Geral de Carapicuíba, na Grande São Paulo.
Entra no consultório número 2, onde examinará, sob supervisão de um residente e de uma médica, pacientes como Caroline Sena, 36, com suspeita de trombose na perna direita.
"Foi um ótimo atendimento. Ela me tocou, examinou direito. Muitos médicos têm medo de tocar na gente", avaliou a cozinheira, ao final da consulta, quando foi encaminhada para um exame de imagem.
Assim como os demais pacientes que aguardam atendimento naquela tarde de sexta-feira na unidade do SUS que é referência na região, Caroline não fazia ideia de que a interna do 6º ano de medicina da Faculdade São Camilo é uma das mais famosas representantes da geração de top models brasileiras que tem em Gisele Bündchen a número 1.
Informada pela reportagem, ela elogia. "Nossa, não sabia! Mas a doutora tem mesmo cara de modelo!"
Ana claudia Michels foi uma das "Angels" da Victoria Secret's em um time de sonhos de brasileiras de sucesso no circuito internacional, ao lado de Alessandra Ambrosio, Ana Beatriz Barros, Raquel Zimmermann.
"Gisele começou um pouco antes, eu e as outras meninas, no mesmo ano", recorda-se a catarinense de Joinville, que estreava nas passarelas em 1995, aos 14 anos, com seu 1m84 e 55 kg, com um estilo a la Kate Moss.
"Eu era bem esquisita, muita magra e alta. Não era o tipo gata, bonita", define a futura médica, que abandonou o sonho da medicina ao embarcar para Nova York como aposta da agência Mega Models.
"Demorei para fazer sucesso lá fora, ficava uns dois meses, fazia um monte de foto e voltava para Joinville." Percorreu todo o circuito mais prestigiado da alta moda em mais de duas décadas como modelo profissional: Paris, Milão, Londres, Nova York.
"No começo, eu era uma criança. Só pensava em voltar para casa, era muito sofrido", conta.
Ao contrário de tantas adolescentes de sua geração, ela nunca sonhara em ser modelo. Fez um curso de manequim para aprender a andar de salto.
Dois dias depois, era convidada para um primeiro desfile na região. Descoberta por um olheiro, foi para São Paulo com a mãe na mesma semana a convite da agência. "Foi uma decisão em família de não deixar passar uma oportunidade."
Hoje, aos 37 anos, a top model ostenta dez quilos a mais na silhueta sempre longilínea, após o nascimento dos dois filhos planejados em meio a uma corrida de longa distância para realizar o desejo de ser médica acalentado na infância.
"Desde muito pequena, meu olho brilhava quando via qualquer coisa ligada à saúde. Alguém doente, alguém machucado. Se tinha alguém com curativo, eu queria ver os pontos."
Plano B
Depois de viver o auge nas passarelas internacionais no início dos anos 2000, Ana Cláudia voltou em definitivo ao Brasil.
Em 2008, começava a pensar para valer em um plano B, quando teve um empurrão no divã do analista. "Um dia meu terapeuta me questionou: 'E o seu sonho de fazer medicina?'"
Ela argumentou com o terapeuta que estava com quase 30 anos, já seria tarde, inviável. Mas resolveu seguir o conselho do psicanalista e se matricular em um cursinho.
"Me matriculei morrendo de vergonha. Tinha ficado 17 anos sem estudar." Havia parado no primeiro ano do ensino médio, concluído por supletivo. "Sempre fui boa aluna."
Medicina era uma meta ambiciosa. Seis meses depois, ao prestar o primeiro vestibular, ficou acima da 500ª colocação. Ficaria mais um ano se preparando para tentar novamente entrar na faculdade.
Dobrou a aposta e passava o dia inteiro no cursinho. Após as aulas, tirava dúvidas com os colegas que também preferiam estudar por lá.
"Eu só estudava, mas foi uma delícia. Até hoje não acredito que passei." Foi classificada em 37º lugar. Eram 50 vagas.
Ela descreve o primeiro dia de aula como "uma das coisas mais incríveis da vida". Emoção maior do que desfilar para mestres como Valentino ou estampar capas de revistas internacionais e dar pinta em festas badaladas ao redor do mundo.
Sucesso que lhe garantiu uma estabilidade financeira que custeia hoje os estudos em medicina. A mensalidade da faculdade é de R$ 8 mil.
Logo no primeiro semestre, encarou fisiologia e bioquímica. "Foi difícil, mas amei." Continua trabalhando como modelo esporadicamente. "Como já sou mais conhecida, consigo encaixar os trabalhos." Subiu na passarela há um mês em um desfile da grife Morena Rosa.
SIMPLES E INTELIGENTE
O residente Luís Felipe Athie, 25, conta como no início foi estranho ter uma colega famosa na carteira ao lado. "Quando ela chegou, todo mundo ficou retraído, mas fizemos um primeiro trabalho juntos e vi que é uma pessoa simples, inteligente e estudiosa. Nada a ver com aquela imagem de futilidade e mesquinhez associada às modelos."
Passado o gelo da chegada, a top diz que fez amigos para a vida toda e rejuvenesceu na faculdade. Era a mais velha da turma. Perdeu o bonde dos colegas formados no final de 2018, quando precisou trancar dois semestres logo após o nascimento dos filhos: Iolanda, de dois anos e meio, e Santiago, de nove meses.
Aos 34 anos, o relógio biológico começava a apitar e ela decidiu que era hora de engravidar, ainda na fase de internato do curso, pois senão teria que adiar a maternidade para depois dos cinco anos de residência médica. "Seria tarde."
Conciliar filhos e estudos é tarefa exaustiva emocionalmente. "Voltar para a faculdade e deixar as crianças em casa é a coisa mais difícil que fiz na vida."
Retomou o estágio no Hospital em Carapicuíba amamentando o caçula. "Cheguei a ir falar com o coordenador para trancar de novo." Foi informada de que teria que perderia um ano de estudos e teria que recomeçar o internato do zero.
Chora ao se lembrar da angústia para definir pela continuidade. Ligou para o marido, o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho, para dizer que não estava dando conta. "Ele me dá muita força e umas broncas."
O marido foi enfático, segundo ela: "Para de chorar, pensa que nossos filhos têm um pai e uma mãe incríveis. Eles têm qualidade de vida. Vai dar tudo certo."
O jeito é lidar com a culpa e aproveitar cada momento de folga. "Fico com eles no final da tarde, mas teve períodos do estágio nos quais ficava no hospital até às 19h. Saía de casa, quando eles estavam dormindo, e voltava quando já tinham ido para a cama. Passava a noite chorando."
NOTA 7
Ana Cláudia diz que era uma aluna nota 9 antes de ter os filhos, agora é nota 7. "Não sobra muito tempo para estudar, mas estou sendo generosa comigo e curtindo a maternidade."
Para concluir o curso no final do ano, escolheu se dedicar principalmente ao estágio, pois não consegue se preparar como deveria para as provas da residência médica, sempre concorridíssimas.
"Quando chego em casa, não dá para me trancar no quarto para estudar. É meu tempo com as crianças."
Ao ver quanto os colegas se matam de estudar nesta fase, acha pouco provável passar na residência de cara. Neste caso, tem um plano B. "Se não passar, pretendo ficar um ano trabalhando como médica de família no SUS e vou ser muito feliz."
Os postos de saúde contratam médicos generalistas, formação que ela terá com o diploma de recém-saída da faculdade. "Estarei apta para atender casos menos complexos."
Quando entrar na residência, Ana Claudia terá outros três anos de clínica geral. "Será um prato cheio. Eu adoro o contato com os pacientes. Adoro perguntar, saber como a doença começou, como é a pessoa. Gosto de criar um vínculo."
Os dois últimos anos da residência são dedicados à especialização, no seu caso, em endocrinologia.
Durante o estágio, a futura médica começa a colocar a mão na massa, sempre sob supervisão.
Neste mês, pela manhã, seu turno é na UTI. Entra às 7h da manhã e se divide com os outros seis internos nos primeiros cuidados com os pacientes graves espalhados pelos 20 leitos.
Cabe aos internos checar os resultados dos exames laboratoriais, fazer uma análise clínica de cada um e apresentar a evolução dos casos à equipe na visita das 9h, quando se reúnem o chefe da UTI, médicos, residentes, fisioterapeutas e enfermagem.
Coube a Ana Cláudia relatar o caso de uma grávida de 19 anos com um quadro raro de arritmia cardíaca e o de um senhor de 73 anos com insuficiência cardíaca grave.
São os internos também que falam com os familiares. "Gosto desse contato. É quando consigo saber mais da vida de cada paciente e tento traduzir quadros complexos de modo simples", diz Ana Cláudia.
É um estágio prático, para estudantes do 5o e 6o anos, após quatro de estudos teóricos. "Avaliamos uma série de quesitos, como a capacidade de ter um raciocínio clínico, de saber tirar história detalhada do paciente", explica Volnei Castanho, 63, chefe da UTI.
Ele mostra a ficha de avaliação que faz de cada um dos 100 internos distribuídos pelos vários setores do hospital. Trata-se de uma unidade de média complexidade, com 241 leitos e 6.599 atendimentos diários em todas as especialidades.
A ficha de Ana Claudia é a única sem foto. O coordenador brinca sobre o fato de a interna ser modelo profissional: "Já tem estrelinha na apresentação pessoal." O quesito leva em conta como o futuro médico se apresenta. "Crocs e roupas rasgadas estão proibidas", diz Castanho.
Ana Claudia usa sempre o mesmo figurino: camisa, jeans e tênis. Passou a usar também óculos. Nunca foi reconhecida por um paciente, mas já ouviu de alguns: "Doutora, a senhora devia ser modelo".
ANJO LOURO
No primeiro semestre de estágio, foi confundida com um anjo por um jovem que levou cinco tiros em um confronto com a polícia. "Eu morri?", perguntou ele ao retornar do coma e se deparar com a médica e modelo.
A interna explicou ao garoto de 18 anos que ele não estava no céu, mas algemado ao leito do hospital.
Segundo Ana Claudia, o fato mais interessante daquele dia no estágio foi uma reunião do grupo de internos e residentes com o intensivista sobre sepse e choque, situações comuns na rotina da ala.
"Foi muito interessante, aprendi muito", disse Ana, empolgada também em estudar o caso da gestante, um daqueles quebra-cabeças médicos dignos de "House", o seriado americano estrelado por Hugh Laurie.
Tudo isso entre às 5h, quando se levantou para amamentar o caçula Santiago antes de sair de casa, e o final do turno no Pronto Socorro, às 16h30, quando deixou o hospital correndo para apanhar a primogênita Iolanda, que sai da escolinha às 17h30.
Uma correria de uma futura médica que se diz realizada ao trocar o glamour das passarelas pelos desafios de saúde pública dentro do Sistema Único de Saúde.
"Temos a sorte de estar dentro de hospital com estrutura, onde o SUS funciona como deveria. Mas ainda assim é angustiante saber que muitos dos pacientes não têm condições de se cuidar fora daqui."
É saber que o senhor que acabou de amputar a perna não vai ter dinheiro para comprar o antibiótico de R$ 100. "Volto despedaçada para casa", afirma.
Retorna no dia seguinte, com a esperança de poder salvar vidas. "Acredito que o SUS pode funcionar. Quero colaborar com isso. Tenho uma visão romântica da profissão, de que as pessoas vão me procurar e eu vou saber dar repostas para as dores delas."