Valdiram precisava apenas ser tratado como humano
Em tempos de pós-verdade, substantivo que diz respeito a circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos importância do que crenças pessoais, a verdade perde importância e espaço para crenças ou ideias pouco ou nada baseadas em construções que envolvem conhecimento. E assim, mal-entendidos se multiplicam, e claro está que essa construção tem como finalidade nada esclarecer ou definir. Basta julgar.
O esporte, via de regra, parece ser uma daquelas áreas nas quais a pós-verdade sempre operou, mesmo antes de ser caracterizada como tal. Gente de todas as formações, identidades e credos religiosos parece entender como ninguém o que acontece dentro e fora de campo. Para isso, basta definir-se como um "amante do esporte". Talvez por isso hoje se vê o esporte ocupar a sala sem plaquinha do final do corredor de um ministério do qual não lembramos exatamente o nome.
Pior ainda é ver os comentários sobre o que acontece com competições e com atletas. Esta semana observei com atenção os desdobramentos do desmaio da jogadora de vôlei Jaqueline e da morte do ex-jogador de futebol Valdiram. E então, imediatamente me lembrei de Michel Foucault e seu desejo de mais do que tomar a palavra, ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. O desmaio de Jaqueline, tomado no princípio como uma brincadeira, produziu inúmeras especulações até ser diagnosticado como um mal súbito devido ao calor do ginásio.
A morte de Valdiram, por sua vez, não foi digna de destaque, senão para reforçar os estereótipos que envolvem a drogadição e a maldição daqueles que são vencidos pelo vício.
Ídolo no Vasco, ele teve a carreira interrompida em 2011, depois de passar por mais de uma dezena de clubes. Era inegavelmente um craque que pouca assistência recebeu para sobreviver à adicção. Adictos são pessoas que sofrem de uma condição individual relacionada diretamente ao meio em que vivem. Não haveria viciados se não houvesse sistema que oferece e comercializa uma droga da qual ele se torna dependente.
Esse é um tema cercado de questões morais e é, portanto, controverso, principalmente em um momento em que as paixões parecem imperar sobre a razão. O tema droga no meio esportivo é cercado de cuidados porque parece macular um ambiente supostamente limpo de impurezas físicas, emocionais e morais. Por isso, o doping é visto mais como um pecado do que como uma contravenção. E a marca deixada por esse "erro" parece não se descolar dos que foram punidos, mesmo que de forma injusta.
O caso de Valdiram é dramático. Depois de não mais conseguir jogar por causa do vício tornou-se morador de rua, primeiro no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, onde morreu vítima de pauladas, quase um indigente. Apaixonados disseram que se ele fosse internado nada disso teria acontecido. Gostaria então de deixar registrado que a internação psiquiátrica, como medida protetiva, não assegura o bom desenvolvimento físico e mental, nem o bom funcionamento familiar, a inserção social ou a recolocação profissional.
Quem conhece a realidade de um clínica psiquiátrica e das dificuldades em lidar com a saúde mental não simplifica os cuidados com uma medida como a internação. Foucault mais do que ninguém estudou e escreveu sobre o que instituições como manicômios representam para a sociedade. Certamente Valdiram precisava de ajuda que não se resumia a uma internação. Precisava apenas ser tratado como humano.