Carta apócrifa de diplomatas critica posição de Bolsonaro sobre ditadura
Em carta apócrifa divulgada nesta segunda-feira (1º), um grupo de diplomatas de carreira do Itamaraty manifestou repúdio às declarações do presidente Jair Bolsonaro e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sobre o golpe militar de 1964.
“Um grupo representativo de diplomatas brasileiros vem manifestar repúdio a declarações do presidente da República e do ministro das Relações Exteriores que relativizam a natureza ilegal, inconstitucional e criminosa do regime de exceção instaurado no Brasil com o golpe de estado de 1964”, diz a carta.
“Declarações e atitudes dessa natureza, cada vez mais desmentidas por novas fontes documentais e sem precedentes na breve história da democracia inaugurada em 1988, violam os mais elementares compromissos que regem hoje a inserção internacional do Brasil e trazem danos graves à imagem do país".
Os 40 diplomatas, de diversas funções e lotados em vários lugares do mundo, têm sido questionados por representantes de outros países sobre os posicionamentos do governo em relação à ditadura, vistos como antidemocráticos.
A gota d'água aconteceu no domingo (31), quando o Planalto divulgou em seus canais oficiais um vídeo que comemora o golpe de 1964 —que deu início aos 21 anos de ditadura militar no Brasil.
Filho do presidente Jair Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) também compartilhou as imagens em suas redes sociais.
"Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares de 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?", escreveu o parlamentar.
O vídeo traz um homem elogiando a ação do Exército em 31 de março de 1964, quando foi deposto o presidente João Goulart.
Na carta, os diplomatas afirmam que as declarações “violam os princípios da dignidade humana e da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, consagrados na Constituição Federal, tripudiam da memória das vítimas de um regime assassino” e que ofendem também “paraguaios e chilenos”, que tiveram ditaduras em seus países. Bolsonaro fez comentários elogiosos em relação ao ditador chileno, Augusto Pinochet, e ao paraguaio, Alfredo Stroessner.
Antes, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, havia afirmado em audiência na Câmara, na quarta-feira (27) que não considera que houve um golpe militar no Brasil em 1964.
"Não considero um golpe. Considero que foi um movimento necessário para que o Brasil não se tornasse uma ditadura. Não tenho a menor dúvida em relação a isso", declarou Araújo.
Já o presidente Bolsonaro havia instruído, por meio de seu porta-voz, Otávio Rego Barros, que o dia do golpe, 31 de março, tivesse as comemorações devidas. Posteriormente, disse que se tratava apenas de rememorar, e não comemorar a data.
E Bolsonaro afirmou também, em entrevista na TV Bandeirantes, que não houve ditadura no país.
“Não quer dizer que foi uma maravilha, não foi uma maravilha regime nenhum. Qual casamento é uma maravilha? De vez em quando tem um probleminha, é coisa rara um casal não ter um problema, tá certo?", afirmou ele na ocasião. "E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura.”
A carta dos diplomatas é anônima por medo de retaliações. O Itamaraty tem uma carreira muito hierarquizada e tradicionalmente, posicionamentos e determinações de superiores não são questionados.
Leia a íntegra da carta
“Um grupo representativo de diplomatas brasileiros vem manifestar repúdio a declarações do presidente da República e do ministro das Relações Exteriores que relativizam a natureza ilegal, inconstitucional e criminosa do regime de exceção instaurado no Brasil com o golpe de estado de 1964.
Declarações e atitudes dessa natureza, cada vez mais desmentidas por novas fontes documentais e sem precedentes na breve história da democracia inaugurada em 1988, violam os mais elementares compromissos que regem hoje a inserção internacional do Brasil e trazem danos graves à imagem do país.
A ditadura instaurada em 1964 cometeu crimes contra a humanidade, de forma sistemática e como estratégia para se manter no poder por mais de vinte anos. Assassinou, sequestrou e torturou opositores de diversas correntes ideológicas, entre eles lideranças políticas contrárias à luta armada. Perseguiu funcionários públicos que não se sujeitaram ao arbítrio, inclusive militares e diplomatas. Censurou as artes, o pensamento e a expressão da pluralidade brasileira. Arrancou de gerações de brasileiros os direitos políticos mais fundamentais. Destruiu famílias, massacrou povos indígenas, estuprou mulheres, torturou crianças. Deixou profundas e deletérias marcas na vida institucional do país, cujas consequências para o efetivo respeito aos direitos humanos ainda hoje enfrentamos.
As mencionadas declarações, que violam os princípios da dignidade humana e da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, consagrados na Constituição Federal, tripudiam da memória das vítimas de um regime assassino. Estendemos nossa solidariedade aos nacionais paraguaios e chilenos, igualmente ofendidos por declarações do mandatário brasileiro em alusão elogiosa às ditaduras que também se instalaram nesses países. Cabe recordar que a Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei, dirigiu à diplomacia brasileira recomendações específicas, entre elas a de compreender como foi possível "se deixar capturar" pelo envolvimento direto na repressão, com graves consequências para as vidas de muitos cidadãos brasileiros (CVN, relatório final, p. 213).
Se em 1964 alguns líderes políticos aderiram ao golpe em seu primeiro momento, vinte anos depois foi Ulysses Guimarães quem resumiu em duas palavras o legado de duas longas décadas de arbitrariedade que vitimaram a sociedade brasileira e a humanidade. Da ditadura, temos apenas "ódio e nojo". Sobre esse sentimento erigiram-se as garantias fundamentais da Constituição de 1988.
Sobre essa base, apenas, legitima-se a ação internacional do Brasil, comprometida com a paz, os direitos humanos e a cooperação para o bem comum da humanidade, conforme os princípios elencados no artigo 4º da Constituição Federal.”