Com atraso, moda transforma suas passarelas em marcha das vadias
Mulher que usa roupa provocativa não pode reclamar se for estuprada, acredita um em cada três brasileiros entrevistados pelo Datafolha, em 2016; a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não merece ser estuprada, segundo o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), porque ela "é feia"; a escalada de violência sexual, de acordo com o Eurostat, braço estatístico da União Europeia, assola o continente.
Se as mulheres nunca estiveram tão expostas ao descalabro machista, também ganharam voz e roupa para enfrentá-lo. A palavra "liberdade" foi citada pelos estilistas mais importantes, de Miuccia Prada a Paul Surridge, da Roberto Cavalli; de Maria Grazia Chiuri, da Dior, a Anthony Vaccarello, da Saint Laurent, para explicar o porquê de tantos decotes, fendas e sexo na passarela.
A pele descoberta nas passarelas da Europa é resposta ao cerceamento da liberdade feminina de poder encurtar os comprimentos de seus vestidos para usar o corpo como expressão, espinha dorsal do que se entende por moda.
Enquanto a Prada, em Milão, cortou buracos nas costas e fendas em lugares onde nunca elas estiveram, a Christopher Kane, em Londres, imprimiu corpos femininos em êxtase nos vestidinhos de alça, escrevendo "alegria do sexo". Vaccarello, em Paris, emulou na terça-feira (25) os anos dourados de Saint Laurent aliando a "imoralidade" dos peitos e das coxas ao viés roqueiro.
Entre muitas referências ao legado da grife nos anos 1980, havia em sua passarela, montada em frente à torre Eiffel, o tom de exposição próprio desse tempo exibicionista por natureza.
Os bodies, maiôs, minitops e transparências das passarelas soam como prenúncio de uma nova revolução na vestimenta ocidental. Tendo em vista a imensa quantidade de garotas a fim de arrasar na pista, despidas do pudor do final do século 20, o sexo proposto pela moda é consensual.
Isso significa que ninguém está inventando a roda, mas dando aval para que mulheres explorem identidade e gênero como quiserem. Assim como fez a Gucci de Alessandro Michele, John Galliano entendeu a toada de transgressão e trocou os corpos masculino e feminino na quarta-feira (26).
O embaraço, numa leitura superficial, poderia dar a ideia de que a Maison Margiela, para a qual o britânico desenha, está apenas reproduzindo a tendência do "sem gênero".
Com lupa, vê-se a subversão quando Galliano rasga no tronco e na intimidade os vestidos que pôs em modelos masculinos e, às mulheres, reserva a alfaiataria rígida dos homens.
Mais literal, a Courregès defendeu o peito aberto, a minissaia que o fundador André Courrèges (1923-2016) popularizou e as mil e uma noites de transparências.
A curva abaixo do umbigo saltou na cintura baixa, bem ao estilo anos 2000, e os mamilos foram cobertos por fitas em "X", como se a marca avisasse que, mesmo aparente por opção, a área continua restrita.
Na quinta-feira (27), o americano Virgil Abloh, tesoura do streetwear da grife Off-White, sexualizou sua estética de moda urbana, cheia de moletons e peças casuais, que ajudou a trazer para o luxo e com a qual virou febre entre os jovens amantes do hype.
Minissaias de píton verde-limão, decotes profundos e as já eleitas peças da temporada —os robes transparentes para dormir— preencheram a passarela sexy esportiva do estilista.
A história da moda espelhou vários momentos de liberdade como esse da passarela de verão 2019. Da "queima de sutiãs", em 1968, veio a liberação dos códigos adocicados do pós-guerra; antes disso, o sufrágio feminino dos 1910 destruíra anáguas e corsets.
Agora, a elite da moda joga com variações de lingerie e pele aparente para formar uma grande "marcha das vadias".
O movimento, iniciado em 2011, ganhou força com as denúncias de assédio da campanha MeToo. Todos os anos ele arrasta milhares delas às ruas pelo direito de não temer se vestir como "vadia".
A moda demorou, mas, ao que parece, tenta cumprir o seu dever com elas.