Tecnologia divide trabalho nos EUA em ilha de supersalários e oceano de péssimos empregos

É difícil ignorar a persistente ambição tecnológica onipresente em Phoenix, uma vasta metrópole no meio do deserto.

Há uma fábrica da Intel que está sendo construída ao custo de US$ 7 bilhões (R$ 26,1 bilhões), para produzir chips de sete nanômetros em Chandler; em Scottsdale, a Axon, fabricante da arma de choque Taser, vem contratando talento do Vale do Silício, enquanto adota a automação para atender à demanda crescente por seus produtos. Startups em ramos variados como o de aeronaves autoguiadas e o do blockchain estão afluindo à região, atraídas em parte pela regulamentação moderada e pelos incentivos fiscais. E a Universidade Estadual do Arizona vem formando engenheiros em ritmo furioso.

E no entanto, apesar de todo o seu sucesso em fomentar a criação de empresas na fronteira da tecnologia, Phoenix não consegue escapar a um padrão desconfortável que vem se estabelecendo na economia dos Estados Unidos: a despeito de todos os seus novos e reluzentes negócios de alta tecnologia, a vasta maioria dos novos empregos criados na cidade são no setor de serviços, como saúde, hotelaria, varejo e serviços gerais –áreas cujos salários são medíocres.

As previsões sobre um país em que os robôs farão todo o trabalho enquanto os seres humanos vivem de algum programa de bem-estar social que ainda não foi inventado parecem um sonho ingênuo do Vale do Silício. Mas a automação está mudando a natureza do trabalho e expulsando trabalhadores de baixa escolaridade de setores produtivos como a indústria e os serviços de alta tecnologia, relegando-os a trabalhos de salário miserável e sem perspectiva de avanço.

A automação está dividindo a força do trabalho dos Estados Unidos em dois mundos. Há uma pequena ilha de profissionais de alta escolaridade que ganham ótimos salários em empresas como a Intel e a Boeing, cujos lucros são da ordem de centenas de milhares de dólares por trabalhador. Esse ilha fica no meio de um mar de trabalhadores com escolaridade mais baixa, presos a empregos em hotéis, restaurantes e casas de repouso, que produzem lucro muito menor por trabalhador e só se mantêm viáveis ao pagar salários baixos.

Mesmo os economistas estão reavaliando sua crença em que a maré do progresso tecnológico carrega todos os barcos com ela, e começam a se preocupar com a nova configuração do trabalho.

Pesquisas recentes concluíram que os robôs estão reduzindo a demanda por trabalhadores e afetando negativamente os salários, que estão subindo menos do que a produtividade dos trabalhadores. Alguns economistas concluíram que o uso de robôs explica o declínio na fatia da renda nacional que vai para os salários dos trabalhadores, nas três últimas décadas.

Porque empurra os trabalhadores para as áreas menos produtivas da economia, a automação também ajuda a explicar um dos paradoxos econômicos mais espinhosos: a despeito dos avanços na tecnologia da informação, e das grandes inovações na inteligência artificial e robótica, o crescimento geral da produtividade continua lento.

"A visão de que não devemos nos preocupar com qualquer dessas coisas, e de que basta acompanhar a tecnologia para onde quer que ela nos leve, é insana", disse Daron Acemoglu, economista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Fabricantes de semicondutores como a Intel e a NXP estão entre as empresas mais bem sucedidas da região de Phoenix. De 2010 a 2017, a produtividade dos trabalhadores dessas empresas - uma medida do valor em dólar do que eles produzem - cresceu em cerca de 2,1% ao ano, de acordo com uma análise conduzida por Mark Muro e Jacob Whiton, da Brookings Institution. Os salários são ótimos: em média, US$ 2.790 (R$ 10.406) por semana, de acordo com estatísticas do governo.

Mas o setor não gera tantos empregos assim. Em 2017, o setor de semicondutores e equipamentos correlatos empregava 16,6 mil pessoas na região de Phoenix, cerca de 10 mil a menos que três décadas antes.

O mesmo se aplica a todo o cenário da alta tecnologia. A fabricação de aviões empregava 4.234 pessoas em 2017, ante 4.028 em 2010. Os serviços de projeto de sistemas de computação empregavam 11 mil pessoas em 2017, ante sete mil em 2010.

O grosso dos empregos de Phoenix, porém, fica do outro lado da divisa econômica - na área da baixa produtividade. Os serviços gerais, por exemplo zeladores e jardineiros, empregavam quase 35 mil pessoas na região em 2017, e a saúde e serviços sociais respondiam por 254 mil trabalhadores. Restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação empregavam 136 mil trabalhadores, 24 mil a mais do que no pior momento da mais recente recessão, em 2010. O salário médio desses trabalhadores todos é de menos de US$ 450 (R$ 1.678) por semana.

Os 58 setores mais produtivos em Phoenix –com produtividade da ordem de US$ 210 mil (R$ 783 mil) a US$ 30 milhões (R$ 111,9 milhões) por trabalhador, de acordo com a análise de Muro e Whiton–empregavam apenas 162 mil pessoas em 2017, 14 mil a mais do que em 2010. O emprego nos 58 setores de mais baixa produtividade, nos quais o lucro máximo é de US$ 65 mil (R$ 242 mil) por trabalhador, cresceu 10 vezes mais no período, para 673 mil postos de trabalho.

O mesmo vale para a economia dos Estados Unidos como um todo. O emprego cresce na saúde, serviços sociais, hospedagem, alimentação, serviços gerais e serviços de coleta de resíduos. Não só é difícil automatizar algumas dessas tarefas como os empregadores não têm grande incentivo financeiro a substituir os trabalhadores de baixos salários por máquinas.

Do outro lado do espectro, o peso dos setores altamente produtivos, como finanças, indústria, serviços de informação e comércio atacadista, no emprego total caiu ao longo dos últimos 30 anos.

Os economistas enfrentam dificuldades para compreender o fenômeno. Porque estavam convictos de que a tecnologia inevitavelmente conduz a empregos melhores e salários mais altos, eles resistiram por muito tempo à ideia de que os ludditas, um movimento do século 19 que destruía as máquinas que estavam roubando os empregos trabalhadores, talvez tivessem alguma razão.

"No cânone econômico padrão, a proposição de que é possível elevar a produtividade e ao mesmo prejudicar a mão de obra é tratada como piada", disse Acemoglu.

Ao baixar os preços e elevar a qualidade, a tecnologia deveria causar alta na demanda, e isso exigiria mais empregos. Além disso, os economistas pensavam, trabalhadores mais produtivos teriam rendas maiores. Isso criaria demanda por coisas novas, até então impensadas, que alguém teria de produzir.

Para provar seus argumentos, os economistas apontavam confiantemente para um dos grandes saltos tecnológicos dos últimos séculos, a chegada da era industrial para substituir a economia rural.

Em 1900, 12 milhões de americanos trabalhavam na agricultura. Em 2014, tratores, colheitadeiras e outros equipamentos haviam, expulsado 10 milhões de pessoas do setor. Mas enquanto o emprego agrícola declinava, a indústria criava empregos ainda mais rápido. O que aconteceu? As novas máquinas agrícolas criaram uma alta de produção e reduziram o preço das mercadorias, enquanto a demanda por produtos agrícolas crescia. E os agricultores puderam usar suas rendas mais altas para adquirir mais produtos industriais inovadores.

As novas indústrias eram altamente produtivas e estavam sujeitas a avanço tecnológico em ritmo alucinante. Tecelões perderam seus empregos quando os teares industriais foram criados; secretários perderam seus empregos para o Microsoft Windows. Mas cada giro novo da roda da tecnologia, dos brinquedos plásticos aos televisores e computadores, resultava em renda maior para os trabalhadores e em produtos e serviços mais sofisticados para que eles comprassem.

Na atual revolução tecnológica, algo diferente está acontecendo. Em um novo estudo, David Autor, do MIT, e Anna Salomons, da Universidade Utrecht, constataram que, nos últimos 40 anos, o nível de emprego caiu em cada setor que introduziu tecnologias para elevar sua produtividade.

O único motivo para que o emprego não tenha caído em toda a economia é que outros setores, onde o crescimento da produtividade é menor, cobriram a diferença. "O desafio não é a quantidade de empregos", eles escreveram. "O desafio é a qualidade dos empregos disponíveis para os trabalhadores de baixa e média capacitação".

Adair Turner, pesquisador sênior do Institute for New Economic Thinking, em Londres, argumenta que a economia atual se assemelha ao que teria acontecido caso os agricultores tivessem gastado a renda adicional que os tratores e colheitadeiras lhes proporcionaram para contratar empregados domésticos. A produtividade no trabalho doméstico não cresce com tanta rapidez. À medida que mais e mais trabalhadores se transferissem da agricultura para o trabalho doméstico, o crescimento da produtividade na economia como um todo teria se estagnado.

"Até alguns anos atrás, eu não via esse tema como muito complicado: os ludditas estavam errados e as pessoas que acreditavam na tecnologia e no progresso tecnológico estavam certas", disse Lawrence Summer, antigo secretário do Tesouro americano e consultor econômico da Casa Branca, em uma palestra no National Bureau of Economic Research, cinco anos atrás. "Hoje já não tenho tanta certeza".
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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